Após um lapso de tempo, a LAPSUS retorna as suas atividades em 2019. Com nova…
O sonho do saber médico (ou o saber médico não é um-equívoco)
Marcelo Braz
A medicina é uma prática que se ampara na ciência. Seja a biológica, a química, ou a física, o saber da medicina e seu discurso se sustentam em uma tentativa de leitura do real. Se há um saber no simbólico que pode ser alojado no real pela medicina, este saber não recobre totalmente o real quando faz desaparecer o sintoma no sentido fenomenológico. A medicina tenta fazer-se sujeito deste saber e o aloja no real enquanto “o analista aloja outro saber, em outro lugar, mas que deve levar em conta o saber no real” (LACAN, 2003, p. 311).
Não poderia ser diferente e nem devemos cobrar da medicina que ela abandone a prática de Hipócrates para demandar mais ainda do que a tarefa de Sísifo na filosofia do absurdo. A realização deste rei transformado em escravo após sua morte é fazer rolar a pedra significante (não é a pedra de Drummond) montanha acima eternamente. Cada vez que ele está a ponto de concluir seu trabalho, que domina com um saber aprendido pela repetição, se encontra com o real e, assim, a pedra chega em um ponto que não pode ser atravessado e volta a rolar novamente para baixo impondo a Sísifo que não saia da repetição significante, que é atemporal. Este rei transformado em escravo segue o discurso do mestre (Zeus) obstinadamente. Realiza o absurdo tal qual os homens contemporâneos, mas consciente de sua condição penitente. Produzir um saber significante (S2) no real é a realização do absurdo que a medicina comprou sem se destruir por causa disso. Ela carrega sua pedra orgulhosa do ponto até onde pode chegar com seu “semblante de fazer-se sujeito desse saber” (LACAN, 2003, p. 311). O sonho do saber médico é modesto. E a psicanálise?
Na lição 7 (1977) do Seminário 24, Lacan afirma que: “o saber enquanto tal é o saber enquanto está no real”. Como essa frase poderia ser reformulada por Lacan para descrever o saber na sua primeira clínica? Certamente seria assim: “o saber enquanto tal é o saber enquanto está no simbólico”. Esta frase poderia ter sido proferida por Lacan durante “La primera” por assim dizer, durante o Discurso de Roma (1953), pois o que estava em jogo era a primazia da função e do campo da linguagem ante a fala, só vindo a priorizar a função e o campo da fala em “La tercera” (1974) e definindo-a aí como a superfície de alíngua. Temos então duas abordagens diferentes para o saber da psicanálise.
A primeira abordagem é a abordagem do saber articulado, do saber significante que se aloja no Outro enquanto tesouro dos significantes. E a Outra? “O analista aloja outro saber” diz Lacan. Que saber seria esse alojado no Outro enquanto meio de gozo? Já vimos que não é um saber enquanto está no simbólico. A outra abordagem é um retorno a Freud no texto “O inconsciente” (1915). O homem de letras por trás da aparência de médico sustenta que a primeira tópica tem uma dinâmica entre o inconsciente e o pré-consciente marcada por duas transcripções. Para que um saber pré-consciente, um saber inconsciente no sentido apenas descritivo possa tocar algo do inconsciente propriamente dito, sistêmico, é preciso que aquilo que é uma representação de palavra (S2) esteja ligada a uma representação de coisa (S1). Para Freud, o verdadeiro saber é o saber que toca o corpo. E só se toca o corpo quando a representação se faz coisa. Este é o saber caro para a psicanálise. Em Lacan, o saber do Um, do S1 serial encarnado num corpo que se goza sem sujeito e sem dito. Um-dizer real que afeta o corpo, idêntico a si mesmo. Pierre Augustin Caron teria sido o primeiro a afirmar que “saber é saber fazer”, “saber fazer aí” diria Lacan, no furo S(Ⱥ), saber fazer com Um-saber disjunto ao pensado do racionalismo cartesiano. Um-saber impossível de integrar à articulação significante. Há Um-signo que não significa coisa alguma, mas pode significar qualquer coisa equivocada. Um-equívoco dissociado da mentira e afim ao verdadeiro, ou seja, afim ao real de Um-saber corporal.