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Os limites da interpretação e o instante de despertar

 Salvador Dalí “La persistencia de la memoria’, 1931
Salvador Dalí, “La persistencia de la memoria”
Nayahra Reis[1]

Em 1900, Freud (2013) inaugura a psicanálise com seu livro célebre, “A interpretação dos sonhos [Die Traumdeutung], onde ele articula a teoria do inconsciente e aquela da neurose a partir do sonho – considerado como a « via régia do inconsciente ». Neste texto, a questão da interpretação também ocupa um lugar privilegiado. No entanto, se Freud, ao longo da suas elaborações sobre as funções da atividade onírica, mantém sua posição no que concerne os sonhos como uma realização do desejo, como uma formação do inconsciente, o qual assim como os lapsos, atos falhos e os sintomas, esconde um sentido a ser desvelado, a ser lido como os hieróglifos e, por consequência, submetido à interpretação, esta última, por sua vez, terá sua noção questionada.

O sonho é uma interpretação

Como nos indica S. Baudini e F.Naparstek (2019) no texto preparatório para o próximo Congresso da AMP, podemos isolar três tempos da obra de Freud sobre a interpretação. Um primeiro tempo onde o sonho é uma realização do desejo e por consequência ele é interpretável ; um segundo tempo com o texto “Para além do princípio do prazer”, onde Freud reconhece a existência de sonhos – tais os sonhos traumáticos -, que não são realizações do desejo, logo, não são interpretáveis ; e um último tempo onde Freud é confrontado ao que ele chama de umbigo do sonho, indicando um limite na interpretação dos sonhos. Este limite da interpretação, considerado por Freud como estrutural, é justamente o ponto que vai interessar Lacan, que articulará a problemática da interpretação ao Real, fazendo dela uma questão central na direção das curas analíticas.

Para Freud, a teoria do sonho é intrinsicamente relacionada ao inconsciente e a ética da interpretação faz parte do trabalho analítico, não podendo ser praticada de forma isolada, o que implica dizer que ela é submetida à relação transferencial. É o que M-H Brousse (2019) qualifica como o inconsciente transferencial ou o sonho transferencial, já que aquele que conta um sonho busca de certa forma um interlocutor. Ainda de acordo com M-H Brousse, em Freud encontramos a ideia de que é o analista quem interpreta o sonho do analisando através do método da decifração, o qual está submetido à metáfora, à metonímia, ou seja, às leis da linguagem e do funcionamento da cadeia significante. Trata-se aqui do aspecto « via régia » do inconsciente freudiano, onde o sonho teria uma intenção de significação, suscetível de ser decifrado. Mas, acrescenta Brousse, o sonho interpreta também. O sonho é uma interpretação, mas a interpretação não se resume ao sonho, afirma Brousse, destacando para o fato de que, dizer que o sonho interpreta, é uma tese lacaniana.

Dando seguimento a esta hipótese levantada por M-H Brousse, J-A Miller (1996) no texto “A interpretação ao avesso”, alerta para esta ideia errônea de que é o analista que interpreta. Para Miller, a interpretação primeira é esta do inconsciente do analisante, enquanto que a interpretação analítica vem depois. O inconsciente interpreta e quer ser interpretado, diz Miller, acrescentando que “interpretar é decifrar, mas que decifrar é cifrar novamente, o que indica que o movimento só encontra seu limite na satisfação”.

A questão do gozo, ou seja, do que se satisfaz, se tornará para Lacan, a partir de um determinado momento do seu ensino uma questão essencial. Assim, como indica E. Solano-Suarez (2011), “onde se fala, se goza, onde se sonha, se goza e onde se delira, se goza mais ainda”. O ponto crucial para a psicanálise seria então, segundo esta última, de se questionar sobre o que fazer para que a experiência analítica não se resuma apenas a um processo de decifração das formações do inconsciente, mas que ela consiga, se servindo da linguagem, tocar o gozo do sintoma, gozo este do qual nós queremos nos livrar, pois nos faz sofrer, mas que, ao mesmo tempo, nos proporciona uma satisfação. Lacan também acredita que há algo do gozo do sintoma que se presta a ser lido, decifrado, mas não-todo, o que significa dizer, que existe nele uma parte irredutível, que seria da ordem do real. Aqui, podemos fazer uma analogia com o que Freud chama de umbigo do sonho, onde justamente o sonho, assim como o sintoma, não pode ser interpretado na sua totalidade.

Os limites da interpretação

Freud (1900), observando o processo de decifração do sonho, será confrontado ao que ele chamará de Unerkannt, umbigo do sonho, ponto insondável, de não reconhecimento do conteúdo sonho, o qual implica num limite à interpretação do sonho. A questão do limite da interpretação ocupará Freud por muitos anos e em 1925, num suplemento à 8a edição da Traumdeutung, ele vai abordá-la a partir da sua hipótese quanto ao ganho imediato de prazer, Lustgewinn, da atividade onírica, afirmando que além da função utilitária do sonho, como guardião do sono, este também busca um ganho de prazer. Como observou Fabian Fajnwaks (2001), a surpresa deste texto é de ver que Freud considera o ganho de prazer produzido pelo sonho, como um limite do que nele pode ser interpretado. E é neste sentido que podemos entender o comentário de Lacan (1973-74) sobre este mesmo texto de Freud, onde ele afirma que tal como no funcionamento da linguagem, o limite do gozo, como sentido sexual que não pode se escrever, está na cifração e não na decifração do sonho.

Num outro texto, Lacan (1975/2019),  em resposta à uma questão de Marcel Ritter sobre a existência de uma relação entre o umbigo do sonho com o Real e deste último com o desejo, já que Freud articula a questão do umbigo do sonho com o desejo, nos demonstra em que o umbigo do sonho, enquanto furo, faz limite à interpretação. Para Lacan, quando Freud se confronta com o umbigo sonho, ele é na verdade confrontado com o recalque originário, que se caracteriza por não poder ser nomeado. “É um furo, é algo que é o limite da análise. Isto tem evidentemente alguma relação com o Real, o qual é perfeitamente denominável de tal modo que é puro fato. Não é sem razão que ele introduz a noção de umbigo”. Além disto, Lacan associa a palavra umbigo ao cordão umbilical e ao fato de que o falasser pelo simples motivo de já se encontrar imerso na linguagem, se encontra excluído de sua própria origem. A audácia de Freud, nos diz Lacan, foi de afirmar que nós trazemos esta marca dos efeitos da lalíngua, nos sonhos. Lacan nos convida então a pensar a relação do falasser com o inconsciente, a partir deste ponto de real no campo da linguagem, onde há algo impossível de ser reconhecido, de ser simbolizado. É neste sentido que Lacan é levado a afirmar que “o umbigo do sonho é um furo”.

O sonho como instrumento do despertar

Éric Laurent (2019), numa leitura rigorosa da análise lacaniana dos sonhos, avança que Lacan propõe uma prática anti-freudiana do sonho. Enquanto Freud considerava que o sonho servia para continuar a dormir, Lacan diz que o sonho serve para despertar. De acordo com E. Laurent, a partir do seminário Mais Ainda, Lacan generaliza a ideia de que o sonho deve ser entendido como instrumento do despertar, o que supõe tocar no que Freud já havia elaborado sobre o princípio do prazer como borda, limite do gozo. Dizer que o sonho é um instrumento do despertar, implica, segundo E. Laurent, em revisitar a definição de despertar. Assim, acrescenta Laurent, enquanto Freud tratava da oposição sono versus despertar como algo de ordem biológica, Lacan subverte esta ideia avançando que: o despertar é um desejo particular ; que nós despertamos para continuar a sonhar ; que nós não despertamos nunca ; ou ainda que o despertar absoluto é a morte.

O despertar ao qual Lacan nos confronta, de fazer do sonho um instrumento do despertar, é, ainda de acordo com Laurent, uma nova maneira de articular o desejo e o gozo. Dito isto, ele afirma que o gozo não é uma realização do desejo, ao contrário, ele é o que não se pode articular, inclusive no desejo e por consequência, desperta tudo o que rompe com a homeostase do princípio do prazer.

Para concluir, Laurent insiste no fato que hoje em dia ainda somos confrontados aos sonhos e que é preciso num primeiro tempo da análise, decifrar os sonhos, acompanhar os analisandos nas suas inesgotáveis associações sobre seus sonhos relatados sob transferência, se servir do manejo do uso do sentido, para poder enfim, num segundo momento, se passar dele e alcançar o instrumento que o sonho se torna no final de uma análise, um instrumento do despertar. É então, a partir do seu uso e não apenas da sua interpretação, afirma Laurent, que o sonho continua em vigor na época atual.


Referências
BAUDINI S. e NAPARSTEK F., O sonho : sua interpretação e seu uso na cura lacaniana, texto de apresentação do XII Congresso da AMP 2020, disponível em : https://congresoamp2020.com
BROUSSE M-H., e LAURENT É., Une nuit de rêve, atividade preparatória ao XII congresso da AMP, realizada na ECF, Paris, 28 janeiro 2019. (inédit).
FAJNWAKS F., Les limites de l’interprétation , in Cliniques Méditerranées, Ed. Ères, n° 64, pp. 243-251, 02/2001.
FREUD S., L’interprétation du rêve (1900), Ed. Points, Paris, 2013.
FREUD S., Quelques additifs à l’ensemble de l’interprétation des rêves  (1925), in Résultats, idées problèmes II Paris, PUF, 1985.
LACAN J., Les non-dupes-errent (1973-74), (inédit).
LACAN J., L’ombilic du rêve est un trou , Jacques Lacan répond à une question de Marcel Ritter (1975), in La Cause du Désir, n° 102, 06/2019.
MILLER J-A., L’envers de l’interprétation , in La Cause Freudienne, n° 32, 02/1996.
SOLANO-SUAREZ E., Rêves, délires et réveils, 01/2011, disponível em : https://www.lacan-universite.fr/

[1] Mestre e Doutora em Psicanálise pela Universidade Paris VIII, França; Membro de L’Envers de Paris/ECF.
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