Após um lapso de tempo, a LAPSUS retorna as suas atividades em 2019. Com nova…
Sonho, desejo, despertar: entrevista com Marina Recalde
Por ocasião do Curso Breve do Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB), ocorrido nos dias 2 e 3 de agosto de 2019, tendo por tema “Sonho, desejo e despertar”, tivemos em solo baiano Marina Recalde, psicanalista membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), Analista de Escola (AE) de 2013 a 2016 e docente da Universidade de Buenos Aires (UBA) e do Instituto de Clínica de Buenos Aires (ICBA). Aproveitando a oportunidade, a Equipe Lapsus convidou a conferencista para uma breve entrevista.
Equipe Lapsus (EL) – Você poderia falar sobre o sonho e a transferência analítica?
Marina Recalde (MR) – Quando começamos a sonhar? Quando a linguagem passa a nos habitar, isto é, quando podemos começar a colocar imagens em palavras. O sujeito sonha. E se ele faz do sonho uma história e a dirige para alguém, ou seja, para um analista, é porque ele quer saber. Ele não quer deixar esse sonho preso no sono. Dito de outro modo, o estatuto do sonho será o indicado pelo sonhador. Às vezes, o sujeito usa seu sonho para continuar dormindo, e esse sonho é reduzido a uma tentativa de elaborar o que ocorreu enquanto dormia. Ou o sujeito o utiliza para transformá-lo em uma história dirigida ao analista, na tentativa de lhe dar um uso produtivo para elaborar o trauma (em seus dois aspectos, problematismo estrutural e trauma contingente) e tentar acordar do sonho neurótico. É da maneira que eu entendo a frase de Éric Laurent, em uma entrevista conjunta com Marie-Hélène Brousse[1], que disse que se pode argumentar que “algo no sonho será transferido. É o lado do inconsciente transitório ou do sonho transferencial.” Se o sujeito decidir fazer um uso produtivo desse “algo” que vai para a transferência, será a ocasião de colocá-lo para trabalhar, com um analista, no caminho analítico. Mas deve ser direcionado a um Outro, transformado em uma história. Ao transformá-lo em uma história e colocá-lo para trabalhar sob transferência, o sonho pode ter consequências na vida do sujeito. Não é um sonho simples.
O que é muito interessante notar é o ponto em que Freud se depara com a semelhança entre o trabalho sobre o sonho e o que mais tarde será a associação livre. “Deve ser expressamente ordenado que renuncie às críticas à formações de pensamento percebidas […]” é que essa crítica é culpada por ele não conseguir descobrir a resolução desejada do sonho, da idéia obsessiva etc”. Neste artigo (A interpretação dos sonhos), Freud opõe a reflexão à introspecção, mas já podemos ver o que mais tarde será uma indicação necessária em qualquer análise: associar livremente, ou seja, falar sem pensar, sufocando todas as críticas. Como acontece no sonho.
É Freud quem, desde o início, indicará que o sonho deve ser apresentado em fragmentos. Dito isto, os analistas devem ser advertidos sobre os detalhes mais próximos do método de descriptografia, pois permite ler os detalhes e não a cena completa.
No Seminário 11, Lacan estabelecerá a diferença entre o inconsciente e o sujeito do inconsciente. Se o inconsciente falha, se o sujeito é surpreendido por um ato fracassado, por um lapso, por um sonho, etc. Quem sonha? E se a resposta é que assumimos um sujeito para o inconsciente, é porque o inconsciente produz e o sujeito não entende o que essas produções significam. “Para nós, o importante é que nisto vemos o nível em que – antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que está situado nele – algo conta e é contado, e nessa contagem já existe o contador. Só depois o sujeito deve ser reconhecido nele e deve ser reconhecido como contador”. Ou seja, primeiro existe a estrutura da cadeia significativa e, em seguida, um sujeito a essa cadeia deve ser concebido. O assunto, então, não é dado de antemão. O sujeito do inconsciente é o efeito dessa cadeia significativa.
Outro aspecto que vincula o sonho à transferência analítica é justamente aquele que nos permite pensar que o uso que o sonhador concede a um sonho, tornará possível a sua transferência. Ou seja, decidir que esse sonho confirma o fim é o tempo que o analisador usa esse sonho para concluir sua análise.
Enquanto conversávamos nas reuniões que realizamos no âmbito do Instituto, vimos que temos sonhos e pesadelos em que o sonhador não acorda. É o caso de Freud com Irma, e é o caso de Raquel Cors Ulloa, quando na noite anterior chamava a secretaria do passe. Ela sonha que estava à mesa do passe e um amigo íntimo diz para ela não chorar. Quando é a sua vez de falar então ela decide respirar e de repente é perseguida por um homem feio, pálido e magro: é a morte. Corra e corra, você está prestes a alcançá-lo! Há uma parede, pula, mas ele agarra a perna dela. Nesse momento, do nada, surge um braço forte e firme – é de um analista. Sem pensar, conectou os dois braços; o braço do analista e o braço da morte e se separou de ambos. Ela os libera e sai. Uma mensagem chega através do telefone celular: qual é a identificação primária da criança no final da análise?
O engraçado é que ela não acorda. É um pesadelo! A morte a persegue, agarra sua perna e ela não acorda. Como Freud com Irma, Raquel quer saber. Ou seja, nas palavras de Romildo do Rego Barros[2], esse pesadelo retornou em um sonho, mas desta vez não deve ser decifrado. A leitura que ela faz é que é um sonho do fim. E como ela nos diz: “Pular o muro e liberar o analista me permitiu liberar as horríveis identificações dessa“ menina que quase morreu”[3]. Agora, poderia ter sido outra leitura, outro uso que ela poderia ter lhe dado. Ou seja, poderia ter se apegado àquele braço forte e firme do analista que quebra/ interdita o braço da morte e pula. E isso também pode ter sido lido como um impulso para continuar conhecendo e mergulhando ainda mais na análise, reaparecendo a cadeia significativa para relançá-lo à livre associação. Ou seja, poderia ter sido lido como um sonho de transferência. Mas ela lê de forma diferente e decide fazer outro uso desse sonho. Outro uso de acordo com o momento da análise em que se encontrava, mais próximo do fim do que do começo.
EL – Como podemos pensar os sonhos e sua interpretação nas psicoses?
MR – Lembro-me aqui de uma diferença fundamental: na psicose, mesmo que exista um sonho, ele não pode ser interpretado no modelo neurótico. O sonho, na psicose, é levado ao nível da alucinação, onde o proibido volta no real. Então, poderíamos dizer que isso já faz com que entre no campo do que não é interpretado, do que resiste à interpretação. Razão pela qual a operação analítica não seria interpretada para encontrar um significado fálico, se não, pelo contrário, é a tentativa de produzir uma delimitação do prazer que a alucinação apresenta, atormentando o sujeito.
Nesse ponto, deve-se considerar que existem alucinações na neurose e na psicose. A diferença é que, neste último caso, as alucinações respondem ao mecanismo de exclusão, onde um significante rejeitado realmente retorna. Na neurose, alucinações imaginárias são o efeito da intrusão do imaginário entre o real e o simbólico, uma conseqüência da exclusão generalizada.
Isso levou Jacques-Alain Miller a se perguntar que, se todo mundo elogia, como Lacan a formulou, é necessário concluir que a ausência de relações sexuais constitui uma alucinação, também negativa?
Um exemplo claro de um sonho é o sonho conhecido do Wolfman. Caso em que, embora Freud tenha tentado fazê-lo entrar na neurose, a partir da orientação lacaniana, podemos lê-la como uma psicose. Mesmo retomando os pontos que Freud não fecha para colocá-lo como tal. Freud insiste em pensar sobre isso e interpretá-lo como um neurótico, mas ele também fala sobre exclusão (embora para Freud, a exclusão nessa altura não esteja ligada exclusivamente à psicose, pois é Lacan quem lhe dará esse viés). Para Freud, os sintomas intestinais mudam após o sonho dos lobos. Temos um sujeito identificado com uma mãe doente do intestino. A identificação dessa mãe tem dupla face: por um lado, apresenta uma característica histérica de identificação, mas, por outro, é evidente que o sujeito não reconhece a castração da mulher. Então, é um sonho, sim. Mas com essas peculiaridades. Essa dupla face em relação à castração perturbou Freud ao ler o caso. Até chega ao ponto de dizer que esse reconhecimento de castração trouxe consequências e localiza, na alucinação do dedo decepado, as evidências de seu reconhecimento. E a rejeição o coloca em uma regressão real da unidade no nível do id. Tudo é ordenado levando em consideração essa falta de significado fálico que permitiria uma identificação à maneira de uma neurose. Se o falo funcionasse, esse sonho poderia permitir que ele dissesse algo daquele prazer que escapa ao significante, uma mensagem endereçada ao Outro, mas ao mesmo tempo criptografada pelo prazer. Como não está funcionando, o sonho causa esse efeito sublinhado por Freud.
EL – Pensando o analista no último ensino de Lacan como aquele que “atesta com sua presença o encontro com o real”, como podemos articular o desejo do analista com o despertar?
MR – Como sabemos, o despertar como tal, o despertar final, se me permite expressá-lo, é impossível! Porque há uma dimensão do inconsciente que é inevitável. No entanto, isso não impede a aproximação de um possível despertar menos difuso na fraqueza mental, da qual sempre seremos afetados. Mas, para se envolver menos com a fraqueza mental, é necessário que haja um analista, que opere com seu desejo (ou com seu discurso, de acordo com o tempo dos ensinamentos de Lacan), e um analisador que consente com esse impulso. É assim que entendo a frase de Jacques-Alain Miller quando ele afirma que o desejo do analista é o desejo de acordar. Frase maravilhosa, que visa justamente abalar o assunto de sua dormência neurótica. E tomo aqui uma frase que li como uma excelente orientação clínica, que é o que esta pergunta me faz entender. Miller diz: “mas apenas enquanto ele (o analista) testemunhar com sua presença e não se identificar com o suposto saber, isto é, com o que é apenas o efeito do significado, dado que o sujeito supostamente sabe, nada mais é do que o efeito de significado implicado pela possibilidade de interpretação”. Formularia isso como a vocação do analista, do analista da terceira era de Lacan, que testemunha, com sua presença, o encontro com o real[4]“.(4)
É um parceiro com o qual o analisador joga seu jogo. Sabemos que o analista é uma figura do real, que no auge dos últimos ensinamentos de Lacan ele deve estar disposto a jogar seu jogo como analista-sintético, o que aponta para isso além da dimensão terapêutica e além da dimensão da transferência inconsciente. Orientação clínica preciosa, porque mostra que a orientação não é para o real, mas é para o real, o que marca o sulco, mas que não empurra o sujeito para o pior, mas sacode-o da sonolência que a neurose produz inevitavelmente.