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Um sonho prolongado, realização do despertar

Christian Schloe , “Portrait Of A Heart”, Digital, 2013
Christian Schloe, “Portrait Of A Heart”, Digital
Rogério Barros

FREUD, Sigmund. Sobre la psicología de los procesos oníricos. En: La interpretación de los sueños. Volumen V. Buenos Aires: Amorrortu, 1991. p. 504-505.

Las condiciones previas de este sueño paradigmático son las siguientes: Un padre asistió noche y día a su hijo mortalmente enfermo. Fallecido el niño, se retiró a una habitación vecina con el propósito de descansar, pero dejó la puerta abierta a fin de poder ver desde su dormitorio la habitación donde yacía el cuerpo de su hijo, rodeado de velones. Un anciano a quien se le encargó montar vigilancia se sentó próximo al cadáver, murmurando oraciones. Luego de dormir algunas horas, el padre sueña que su hijo está de pie junto a su cama, te toma el brazo y le susurra este reproche: «Padre, ¿entonces no ves que me abraso?». Despierta, observa un fuerte resplandor que viene de la habitación vecina, se precipita hasta allí y encuentra al anciano guardián adormecido, y la mortaja y un brazo del cadáver querido quemados por una vela que le había caído encima encendida. […] Ahora bien, después que hemos reconocido al sueño como un producto provisto de sentido que puede insertarse en la trama del acontecer psíquico, nos maravillará naturalmente que en tales circunstancias sobreviniese un sueño, cuando lo indicado era el más brusco despertar. Pero debemos reparar en que este sueño tampoco escapa a un cumplimiento de deseo. En él, el niño se comporta como si estuviera vivo, él mismo da aviso al padre, se llega hasta su cama y le toma de un brazo, como probablemente lo hizo en aquel recuerdo del cual el sueño recogió el primer fragmento del dicho del niño. Y en virtud de ese cumplimiento de deseo, precisamente, prolongó el padre por un momento su dormir. El sueño prevaleció sobre la reflexión de vigilia porque pudo mostrar al niño otra vez con vida. Si el padre se hubiera despertado enseguida, extrayendo la conclusión que lo llevó a la cámara mortuoria, habría abreviado la vida del niño, digámoslo así, por ese breve lapso […].


No capítulo VII de A interpretação dos sonhos, intitulado Psicologia dos processos oníricos, Freud (1900-1901/1996a) traz um importante sonho. Nele, um pai desperta da sua produção onírica ao ouvir o filho, recém falecido, cujo corpo era velado no quarto ao lado, em tom de censura, proferir a seguinte frase: “Pai, não vês que estou queimando?”. Esse sonho traz para Freud uma questão: porque o sonho se produz em tal circunstância, quando o que deveria ocorrer seria o mais rápido despertar? De pronto, advoga que o pai deveria ter adormecido com a preocupação de que esse fato pudesse ocorrer, mas o que lhe inquieta é produção onírica que se mantem, ao invés de causar o despertar.

Freud (Ibid.) repete a hipótese central da obra: o sonho realiza um desejo. Nesse caso, prevalece no sonho o desejo do pai ver o filho vivo. Indica que, caso o sonhador tivesse acordado quando da percepção do clarão que se apresentava a porta do seu quarto, não reencontraria o filho em seu sonho, “abreviando a vida […] por esse breve lapso de tempo” (Ibid., p. 542).

Sonho, impossível ultrapassem, despertar

Proponho pensar que o prolongamento do sonho toma da indestrutibilidade do desejo, qualificado assim por Lacan (1959-60/1991) no seminário sobre a ética, a força para dar continuidade a produção onírica. Isso nos permite interrogar sobre a introdução do aspecto pulsional no sonho, aí mesmo onde a continuidade cumpre um proposito de satisfação cujo objeto não se vê, mantendo o sonhador adormecido apesar do clarão, sendo reintroduzido na frase que desperta: “Pai, não vês?”.

Freud (Ibid.) dá revelo a frase proferida no despertar, a despeito do clarão. Propõe que se trata, aí, de uma condensação de elementos que tocam “o espírito do pai” (p. 542). Freud (Ibid.) a reparte a frase. “Estou queimando” pode ter sido proferida pelo filho em virtude de febres da doença. Sobre o “Não vês?”, apenas aponta estar carregada de afeto, cuja articulação primordial nos é desconhecida.

Em Os afetos nos sonhos, Freud (1900-1901/1996b) elucida que estes permitem que os sonhos sejam incluídos com maior energia entre nossas experiências anímicas. Isso se deve ao fato de que os afetos não sofrem deformações, diferente das representações, que são deslocadas e substituídas. Os afetos nos dão pista do que burla o recalque, não sendo por ele influenciado. Uma mira ao real do sonho, umbigo cuja potência simbólica não faz mais que bordejar.

“Não vês?” indica uma satisfação com um objeto sem imagem, alçado pelo simbólico por uma frase na negativa. Objeto a que se apresenta próximo, tão próximo que dispara a angústia (LACAN, 1962-3/2005). Objeto a que, fora do circuito escópico, aponta para a opacidade de uma satisfação irrepresentável, cujo “amago do mesmo problema” deve ser explicado sobre “outro ângulo de abordagem” (FREUD, 1900-1901/1996a, p. 543).

Como aponta Lacan (1969-70/1992), aprendemos com a Traumdeutung freudiana que acordamos para nos manter em uma realidade em que seguimos sonhando. Entretanto, despertar para o irrepresentável da morte nos permite antever esforço de ultrapassagem, prolongando um mais além que aponta pra realização do despertar. Em oposição à tese do sonho ser a realização de um desejo, podemos supor, com Lacan, que o sonho é, em verdade, a realização do despertar (Naparstek, 2019).

“Um sonho dentro de um sonho”[1], sob transferência

Se de um lado, pensamos o despertar como a (real)ização do sonho, um ultrapasse impossível que a maquinaria inconsciente se esforça em alcançar, outra vertente interpretativa se faz também possível. Nesse sentido, um detalhe do escrito de Freud (1900-1901/1996a) nos chama atenção: este sonho se trata, em verdade, de um “ressonho”. A paciente de Freud, dona do sonho, replica-o, sob transferência. Trata-se de um sonho outrora proferido em uma conferência sobre os sonhos que a paciente assistiu e cuja origem real é desconhecida. Produzido sob transferência, o sonho se endereça ao analista, a fim de confirmar a tese da realização do desejo com um “sentido óbvio” (FREUD, 1900-1901/1996a, p. 542).

Se, da frase do filho, antevimos o real do gozo que não se enreda ao significante ou se permite velar, satisfação que, destrilhada circuito pulsional do olhar, causa angústia que desperta, o “ressonho” nos permite ver como o desejo da histérica enreda-se ao desejo outro para se satisfazer, tal qual Lacan (1958/1998) propõe na Direção do tratamento e os princípios do seu poder. O sonho se trama no seio do Outro, tece-se dele, articulando-se em estrutura de linguagem. Inconsciente transferencial que, pela via onírica, enlaça-se ao Outro em busca de um sentido.

O prolongamento do sonho dá pistas de outra satisfação que culmina em um ponto impossível. Se essa fenda não se transpõe, cabe interrogar: é a vida um sonho (ZLOTNIK, 2019) excepcionalmente prolongado em que nos esforçamos em alcançar um gozo impossível?


Referências
FREUD, S. (1900-1901a). A psicologia dos processos oníricos. Em: FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
FREUD, S. (1900-1901b). Os afetos nos sonhos. Em: FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998.
LACAN, J. (1959-1960). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
LACAN, J. (1962-1963). O Seminário livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
LACAN, J. (1969-1970). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
Naparstek, F. El despertar de lo real, bajo su aspecto de imposible – entrevista con Silvia Baudini, Fabián Naparstek. [Entrevista concedida a] Karina Piluso. Freudiana, Buenos Aires, 85/2019, p. 109-124, 2019. Disponível em: http://uqbarwapol.com/el-despertar-de-lo-real-bajo-su-aspecto-de-imposible-entrevista-con-silvia-baudini-fabian-naparstek/.
ZLOTNIK, M. A vida é sonho? Textos de orientação do XII Congresso da AMP, 2019. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/la-vida-es-sueno.html

 

[1] Esse título faz referência a música da banda Nação Zumbi, intitulada “Um sonho”. Destacamos um trecho, que tangencia a abordagem aqui proposta: “Um sonho dentro de um sonho/ Eu ainda nem sei se acordei/ Desse sonho, quero imagem e som/ Pra saber o que foi que aconteceu”.
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