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A catástrofe saiu da tela: a experiência do infamiliar entre a ficção e o real

Joe Webb - Selected collages - image asset 5
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Giovana Reis Mesquita
Participante do Núcleo de Psicanálise e Audiovisual  (IPB)
Aluna do curso da Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana (IPB)

O desconforto e horror que a experiência cinematográfica pode produzir nos chamados cinema catástrofe é da mesma natureza que a experiência que se pode viver em uma pandemia, tal qual a que nos assoma hoje? Talvez o texto de Freud sobre o infamiliar possa produzir algumas considerações sobre tal assunto.

O cinema pode produzir prazer, exaltando a ligação entre o simbólico e a libido, alimentando nossa pulsão escópica, alimentando nosso olho; essa abertura por onde se obtém satisfação pelas imagens. Freud (1905/ 1996) destacava a importância do olhar para a sexualidade humana quando diz que a “impressão visual continua a ser o caminho mais frequente pelo qual se desperta a excitação libidinosa […]” (p. 148).

Assim, o cinema cria todo um aparato para o gozo. O gozo pelo olhar. Curiosamente, ou nem tanto assim, o ano da primeira exibição paga de cinema coincide com as primeiras investigações de Freud em direção à Psicanálise, em 1895, e com a invenção do Raio-X. Ou seja, temos aí nessa época a conjunção desse olhar que procura satisfação no conhecer com a ciência, no gozar com o cinema e no saber do que se ignora com a Psicanálise.

O olho é o órgão do corpo que privilegiamos porque além de instrumento de saber, via pela qual se aprende, ele é também fonte de satisfação, por onde gozamos. Para Freud, o olho é o buraco por onde entra o sexo no corpo através das primeiras imagens que nos marcam para sempre (ANTELO, 2015).

Mas o que vê esse olho? O que provoca satisfação ao olhar? Em outro texto, “Além do Princípio do Prazer”, Freud (1920/ 2010) nos traz a ideia de que a satisfação não precisa estar ligada necessariamente a sensações prazerosas, mas, sim, também a sensações dolorosas, à repulsa ou ao horror. Pensando no cinema, essa possibilidade talvez possa justificar melhor o gosto que podemos ter por filmes que tratam das mais diversas catástrofes e ameaças.

Foi Hollywood quem nos familiarizou com esse tipo de filme que é denominado de cinema catástrofe[1] e tem em comum trazer histórias que falam da ameaça da vida na Terra, seja por invasão alienígena, monstros, desastres da natureza ou doença. Parece que nesses casos o roteiro tem uma importância menor e o que vale mais é a capacidade de emular a realidade. Segundo Sontag (1987), esse gênero surgiu na década de 1950 e gira sobre a fantasia humana de sobreviver à própria morte e à destruição da humanidade guiada pela presença de um herói.

Podemos dizer que nesses filmes o que o olho procura ver é o nada, a castração diante das inquietações e suplícios apresentados na grande tela e que também são vivenciados pelo expectador quando suspende sua descrença diante dela. Pode-se dizer que essa experiência estética de horror equivale ao termo freudiano de infamiliar[2]?

O infamiliar, para Freud (1919/ 2019), se refere ao que é terrível, ao que provoca angústia e horror. Mas ele é infamiliar justamente por outrora ter sido familiar, por ser conhecido. Freud (1919/ 2019) diz que: “[…] o infamiliar é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar”. (p. 28).

Ao falar em coisa assustadora, Freud está pondo alguma relação com o objeto olhar. O próprio exemplo que dá – seu horror ao se ver velho no espelho quando desperta em um trem – traduz um infamiliar que vem pela via escópica; ligado ao horror e ao gozo. Dessa forma, podemos dizer que, sim, a experiência estética do cinema pode produzir a experiência do infamiliar em nós. Esse termo não se refere a um objeto, mas, a uma experiência que tem muito de íntimo, de estranho e que pode ter a capacidade de dividir o sujeito.

Mas Freud coloca que há uma diferença quando esse olho deixa apenas de ver as catástrofes como ficção e passa a vê-las como uma ameaça real. No texto O Infamiliar, de 1919, Freud traz uma diferença entre o infamiliar que é vivenciado e o infamiliar que é só imaginado ou sobre o qual se lê. Na ficção, seu conteúdo não está à prova da realidade. Não ameaça a nossa própria vida.

O encontro com o Real é diferente. Nesse caso, é o fenômeno do COVID-19 que fez com que o cinema catástrofe saísse da tela, e o que temíamos e gozávamos ao mesmo tempo aparece agora como realidade. O efeito infamiliar pode se dar justamente quando a fronteira entre fantasia e realidade é apagada; em suas palavras: “[…] quando nos vem ao encontro algo real que até então víamos como fantástico” (FREUD, 1919/ 2010, p.364). Desta forma, nosso fantasma é posto à prova com o Real voltando a fazer furo, sem aviso prévio.

O infamiliar é aquilo que escancara a nossa tão sabida e tão temida castração. É um desagradável encontro com aquilo que tanto se evitou e, por isso mesmo, tanto se teve contato, tanto se mostrou inesquecível; como no nosso gozo com o cinema catástrofe – queremos olhar e gozar com o horror, com a hediondez.

Tanto a ficção do cinema quanto a experiência do COVID podem, portanto, produzir a sensação do infamiliar. Ambos têm elementos que podem provocar um instante de angústia, no aparecimento de alguma coisa fora da simbolização. Essa é uma experiência do Um, instantânea, contingente e singular; que deve logo escapar porque se agarra a qualquer outra coisa dentro do simbólico.

No caso do cinema, parece-nos que sua particularidade pode estar no fato de provocar a experiência infamiliar dentro do registro simbólico. A Das Ding aparece, então, imaginarizada. Quando as luzes da sala se acendem junto com os créditos, a descrença sobre o visto aparece, e o que fica é a vivência de um gozo-satisfação, como nomeia Lacan (1972-1973/ 2008) no Seminário 20.

O encontro com vírus é de outra natureza, é o encontro com o Das Ding no Real. Essa experiência infamiliar pode provocar um gozo-excesso (LACAN, 2008), rompendo os limites do bem-estar e fazendo confluir prazer e sofrimento.

Pensando que a vida só pode ser concebida como ficção – já que é atravessada pelo simbólico – uma forma de sair dessa sensação infamiliar do vírus talvez seja tentar apreender esse Real que nos escapa em novamente uma ficção. Uma ficção que possa contê-lo em algum limite de tela. E, aí, a solução é no um a um, cada qual sendo autor de sua obra.

Assim, em 2020, ciência, psicanálise e cinema entram em uma nova conjunção. A ciência se debruça sobre o novo vírus, desconhecido e nunca totalmente apreensível, e, com isso, se depara com a desconfortante ideia de castração e morte que estava esquecida na sociedade do gozo. A ciência procura ver e não enxerga tudo. O cinema vê suas ficções saírem da tela, sem herói, deixando suas salas literalmente vazias. No cinema, não há quem o veja. E a Psicanálise segue escutando sobre esse inquietante que vem do Real e que parece ser o retorno do eterno mal-estar da civilização. No momento, escutar é o que se tem para ver de novo.


Referências
ANTELO, Marcela. La inquietante extrañeza en el cine. Tese (Doutorado em Comunicação). Departamento de comunicação, Universidad Pompeu Fabra. Barcelona, 2015.
FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. Em: História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 161-239. (Obras completas, 14).
FREUD, S. (1919). O infamiliar [Das Unheimliche]. Em: Obras Incompletas de Sigmund Freud, vol.8. Trad. Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares. 1. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 26-125.
FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. (1972-1973). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. (1968-1969). O seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
SONTAG, S. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.

[1] A relação entre o cinema e catástrofe foi desenvolvida por Marcela Antelo em maio de 2020 em uma Live do Instagram com o psiquiatra Filipe Batista, ex-integrante do Núcleo de Psicanálise e Cinema do IPB sob o título Cinema e Trauma.
[2] O termo original do alemão Das Unheimmlich não tem tradução exata para o português. Optou-se pelo termo “infamiliar”, que se trata da mais recente tradução de Ianini e Tavares da Autêntica editora em 2019.
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