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O feminino, mais, ainda, banhado a luto e melancolia: des-fiando pedaços de Elena
Delza Eloy de Santana Gonçalves
Aluna do Curso Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana (TPOL/IPB)
“ I’m sick with love
Touch me
I turn to water…”
(Clifford & Pinheiro, 2012)
A epígrafe acima é letra de uma canção, inspirada em um texto de Guimarães Rosa, produzida especialmente para o documentário Elena (2012). Dirigido pela mineira Petra Costa, é um trabalho autobiográfico de tamanha sensibilidade, do qual selecionei pedaços para desdobrar a leitura de laços que se dão no relacionamento de três mulheres, marcados pela fratura da perda.
Lacan (1972 / 2008) nos presenteou com a fineza de seu olhar para o Outro gozo, feminino, esse sem margem, que se lança à imensidão do infinito, que é vida-beira-morte. Em mais, ainda, anuncia “não se pode dizer que seja a vida, pois aquilo também porta a morte, a morte do corpo, por repeti-lo. É de lá que vem o mais, o em-corpo, o A inda” (p. 12).
É no corpo que Elena experimenta, até a consumação, um mais, ainda. “Tô me vendo no vidro do trem. Nossa, como eu engordei em três dias. Que decadência! Enquanto eu como, tenho vontade de nunca parar. Acabou, mas eu vou comer mais. Eu quero mais, eu fico pensando no que pode vir depois… mesmo sabendo que de certa forma não tem fim […] Me sinto gorda e vazia”. A dor de Elena é aguda e lateja na carne, um vazio invade o íntimo de seu ser. Ela é tomada por um redemoinho de afetos e não consegue sair, é levada ao mais, ainda, para onde o gozo sem borda convoca ao nada.
Freud (1917 / 1996) diferencia que, no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio, ao passo que, na melancolia, é o próprio sujeito que se concebe assim, ‘decadente’. O melancólico não fez o luto de sua perda, tampouco sabe o que perdeu, no entanto, identifica-se à pura ausência do objeto, do qual torna-se inseparável, enredado intrinsecamente à sua sombra. Elena achava-se ausente de si mesma: “esse corpo tá doente, a vida o fez totalmente doente; […] eu vou me degradar e escorrer por esse ralo”. Penso, em contrapartida, que Elena achava-se tão em si mesma, no real cáustico, que a vida se tornara insuportável. O sem borda é para dentro.
Em O Aturdito, Lacan (1972 / 2003) nomeia “devastação” o que atravessa a relação da menina com a mãe, de quem ela espera, em vão, uma resposta para dar conta do nãotodo que lhe circunda. A mãe de Petra e Elena, por sua vez, confessa que, desde os 13 anos, ansiava morrer, via-se velha e trágica. Um dia, sentada em frente ao espelho da penteadeira do seu quarto, ela [a mãe] faz um desenho, o desenho de sua tristeza. É o falho contorno das vísceras, que se desnudam do véu, e escapa aí, onde o encontro com o real emana e ressoa. Elena se busca: “me olho no espelho […]”; e o que se revela é o gozo opaco: “[…] não vejo nada atrás dos meus olhos”.
Laurent (2012), em A Psicanálise e a Escolha das Mulheres, dedica um capítulo à privação, conceito que Lacan desenvolve, ao longo de seu ensino, em contraponto ao masoquismo feminino de Freud. Discorre que não se trata de as mulheres serem masoquistas, mas de estarem ao abrigo da ameaça de castração, o que lhes permite, facilmente, não sem se devastar, dispor de si mesmas e de seus corpos para alcançarem o Outro gozo, sem limite.
“Você lê para mim a história original, em que ela sofre para se tornar mulher, perde a voz e morre. A pequena sereia aceita passar pela dor de uma faca atravessando seu corpo, sangrando seu corpo, para ganhar pernas e assim dançar”. Nessa cena, Petra narra a interpretação que a irmã construiu em uma ocasião para designar a desventura da pequena sereia nos desfiladeiros de um fazer-se mulher. É uma refinada percepção de Elena, que me remete à Brousse (2019), em Mulheres e Discursos, ao sublinhar o sangue e as lágrimas enquanto os fluidos femininos por excelência. Faço um forçamento, e apreendo que Elena dizia, peculiarmente, de seus próprios fluidos, seu embaraço na circunscrição de um gozo que lhe tomava violentamente. Ademais, Brousse propõe que, na devastação, é um objeto que ocupa o lugar de significante mestre, e não um nome. Portanto, a angústia grita ante um objeto não metaforizado, um objeto que denuncia o corte cru, des-velado.
O documentário é um retrato primoroso do processo de luto da diretora. “Eu me vejo tanto nas suas palavras que começo a me perder em você”. Treze anos mais jovem, ela estava com sete quando a irmã consumou o suicídio. “Esse mistério, me sinto escura. Num escuro que nunca vai terminar” – trecho da carta que Elena deixou. Petra perde sua irmã, sua única irmã, e seu espelho frágil de um fazer-se mulher irrompe em cacos. “Se ela me convence de que a vida não vale a pena, eu tenho que morrer com ela, eu tenho medo do que o tempo vai fazer comigo”. Pois bem: o tempo, as contingências e sua gana, Petra, te possibilitaram fazer rachadura nas palavras, inventar um significante novo para o indizível da passagem ao ato de um grande amor.
“As memórias vão com o tempo, se desfazem, mas algumas não encontram consolo, só algum alívio nas pequenas brechas da poesia. Você é a minha memória inconsolável, feita de pedra e de sombra. E é dela que tudo nasce, e dança”. Miller (2016), em Un esfuerzo de poesia, retoma a pungência da palavra desvestida do comum. É aí que habita a motriz de uma simbolização possível do inefável, que dê conta de revestir o insuportável do real da morte. Arrisco supor que a “memória inconsolável” de Petra é nuance de sua singularidade. O ‘inconsolável’, que não é passível de apagamento, mas de uma reconfiguração que vivifique o falasser.
Ao completar 21 anos, a mãe de Petra lhe diz “agora você está mais velha que a Elena”. Foi ao ultrapassar algo da identificação com a irmã, que pôde, então, “sentir sua morte outra vez”, decantar a perda de um outro lugar, “de fora”. Suportou tomar distância do entrelaçamento que a fazia uma só com a irmã. Ocorre aqui uma mutação, como assinala Freud (1917/ 2006) no percurso do luto, que permite a Petra retomar o encantamento do mundo. Todavia, há um resto que escorre no sulco e não se apaga, o incurável, como aponta Miller (2011). Este dá vida, em Petra, à Elena.
O documentário encerra embalado pela canção “I’m sick with love, touch me, I turn to water…”. Estou doente de amor, toque-me, me torno água… (tradução livre). Banhada na correnteza do luto, Petra entoa “me afogo em você, em Ofélias […] Enceno a nossa morte… Para encontrar ar… Para poder viver”. O documentário é todo um encenar a morte, mas, também, um encenar os rebentos que pulsam das memórias-marcas dessas mulheres.
Ao encenar a morte, “a nossa morte”, há um descolamento, Petra deixa de habitá-la e passa a lhe fazer visitas, em imersões, pois, para se fazer uma travessia, sobretudo digna de um luto feminino por excelência, é imprescindível, ainda, mergulhos nos confins da dor de existir. No mergulho-visita, há elaboração. Petra desfia nós, separa perdas de permanências, urge o incurável.