Wilker França Associado do IPB Esse texto é fruto de alguns questionamentos surgidos a partir…
De Outra Ordem
Marília Santiago
Associada do IPB e Aluna do TPOL
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a voz
dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírios.Uma Didática da invenção – Manoel de Barros
Esse trabalho é fruto de um cartel relâmpago, ocorrido na TPOL, curso de Teoria Psicanalítica de Orientação Lacaniana, ofertado pelo IPB. E durante o módulo de Psicose algumas questões me suscitaram.
O estudo sobre a Saúde Mental é relativamente recente, o discurso da ciência foi hegemônico no cuidado daqueles que saíam à norma. Esses estudos se davam através de catalogar os “fenômenos estranhos”, listar as funções psíquicas e classificá-las em vivências normais ou anormais, de modo a dividir a experiência humana nessas duas categorias. Lacan, em seu primeiro ensino, irá subverter essa ordem, ao colocar em jogo o inconsciente estruturado como uma linguagem, parece fazer girar o discurso hegemônico da ciência e percorrer uma trajetória até chegar ao discurso do analista, no qual o sujeito pode advir. A partir disso, no campo psicanalítico, haverá uma outra forma diagnostica, não mais através dos fenômenos elementares, mas o cerne estará no discurso daquele que se dispõe a um tratamento pela fala.
Entretanto, Freud (2010), em Introdução ao Narcisismo pensava um pouco diferente, acreditava que a psicose não era tratável pela via da psicanálise.
Esses doentes, que sugeri designar como parafrênicos, mostram duas características fundamentais: a megalomania e o abandono do interesse pelo mundo externo (pessoas e coisas). Devido a esta última mudança, eles se furtam à influência da psicanálise, não podendo ser curados com nossos esforços (FREUD, p. 15).
Segundo Freud (2010) não seria possível um estabelecimento da transferência na psicose devido a introversão da libido, impedindo que esta se dirigisse à figura do analista. Haveria, então, uma transferência no campo das psicoses? E qual lugar ocupado pelo analista?
A indicação lacaniana é não recuar diante da psicose, Henrri Kaufmanner (1998) diz que se trabalhamos com o sujeito psicótico dentro do campo estabelecido pela psicanálise, esse não-recuo, somente tem sido possível por não ignorarmos “essa observação freudiana (que adquire outros contornos se considerarmos seu escrito sobre as memórias de Schreber) de que, se não é impossível, a transferência na psicose é, pelo menos, de outra ordem” (p.96). Sendo assim, poderíamos ampliar esse conceito e pensar que na psicose há uma outra relação com o significante?
É a linguagem, de sabor particular e frequentemente extraordinário, do delirante. é uma linguagem onde certas palavras ganham um destaque especial, uma densidade que se manifesta algumas vezes na própria forma do significante, dando-lhe esse caráter indiscutivelmente neológico tão surpreendente nas produções da paranoia (LACAN, 1955, p. 42).
Na tentativa de pensar uma via de resposta a essa questão, Miller nos diz que é no complexo de Édipo onde reside a conexão entre neurose e normalidade, segundo ele, o Lacan clássico aponta que o início da vida psíquica está no imaginário, é no estádio do espelho que constitui a primeira estrutura do mundo primário do sujeito, o que significa que é um mundo instável, sem consistências. O simbólico vem no segundo tempo dessa construção,
a estrutura lacaniana introduz o simbólico – a linguagem, a metáfora paterna- como a potência que impõe ordem, hierarquia, a estrutura, a constância que estabiliza o mundo imaginário. Lacan condensa essa força ordenadora do simbólico, no Nome-do-Pai (MILLER, 2021, p.8).
Para o psicótico, o sentido de seu ser não se prende à palavra. Entretanto, se seu gozo é explícito, não interditado, não deixa de existir uma relação com a linguagem e é exatamente seu enlouquecimento o testemunho dessa relação (KAUFMANNER, 1999, p.97/98).
Essa proposição de um Lacan Clássico, com sua prevalência no sentido, na estrutura, tem como referência à linguagem, há aí um laço com Outro, de endereçamento, de reconhecimento. Na Psicose, a incorporação do simbólico se faz sem a castração, o que significa dizer que há um Outro inundado de gozo, e sem um significante fálico que possa escoar essa inundação. Ao longo da teoria lacaniana, novos conceitos vão surgindo, permitindo novas leituras sobre os fenômenos vistos nos consultórios e instituições.
Da primazia do Outro a primazia do gozo, me parece que essa é a trajetória que o ensino de Lacan se propõe, uma força viva, uma teoria que se coloca através daqueles que se dispõe a fazê-la, que reverbera e nos põe a trabalho. Essa trajetória, implica em uma versão diferente do Outro, a proposta é levar em conta a antecedência lógica do campo de gozo em relação ao campo da linguagem.
Por não comportar a dimensão do sentido, lalíngua altera todo o panorama das relações do sujeito ao Outro e até mesmo a definição do Outro (BARROSO, 2014, pg. 256).
Diante de um discurso que não se presta à comunicação por parte daquele que se coloca à margem do circuito das demandas e das trocas com o Outro, retomo a pergunta: que lugar ocupa o analista? Segundo Lacan (1985), “O delírio pode ser considerado como uma perturbação da relação com o outro, e ele está, portanto- ligado ao mecanismo transferencial” (p.348). Uma possibilidade se apresenta:
(…) o par sujeito suposto saber – transferência funcionaria de outra maneira nas psicoses […] Ora, o sujeito suposto saber não pode ser aqui o que motiva a transferência, já que o saber está ali, do lado do psicótico (MILLER, 2012, p. 156).
É nesse ponto que dançam as cadeiras. O saber não está no lugar do mestre como sempre se pensou, a hipótese de um inconsciente mais além do significante faz com essa dança seja possível. De acordo com via proposta na Convenção de Antibes, o artefato para tecer o laço social se dará pela lalíngua da transferência, que permite um significante poder fazer signo. A partida não está mais sendo jogada no campo do sentido, mas pela via do signo aponta uma possibilidade de transferência.
Na tentativa de aproximação desta proposta, Miller (1996) diz:
Alíngua é feita de qualquer coisa, do que se arrasta tanto nos antros como nos salões. O mal-entendido está em todas as páginas, pois tudo pode fazer sentido, imaginário, com um pouco de boa vontade. Mal-entendido é a palavra certa (p. 69).
Sua marca indelével é tanto vetor de inserção quanto estiga de rebotalho. É com ela e contra ela que nos inscrevemos na corporação humana. Mal-entendido irredutível a qualquer senso comum garantia de um exílio sem retorno, lalíngua nos faz falar, rir e chorar. O estofo de sujeito, suas forças vivas, é essa marca a fogo e sua maneira de se defender dela.” (MILLER, 2014, p.221).
Como a partida não está sendo jogada no campo do sentido, poderíamos dizer que está no território das invenções? Um “recorte-e-cole” como suplência para o sofrimento psicótico? Segundo Miller,
A invenção se opõe habitualmente à descoberta, descobre-se o que já está lá, inventa-se o que não está. Por isso a invenção tem parentesco com a criação. Porém o sentido do termo “invenção” é nesse caso, uma criação de materiais existentes (Miller, 2006, p.1).
Seria, essa, então uma forma de um saber, ou melhor um saber-fazer na psicose?
É seguindo este caminho que Lacan (1985), nos ensina “a linguagem, sem dúvida é feita de alíngua. É uma elocubração de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber-fazer com alíngua” (p. 190). E não seria esse o percurso de uma análise? Em se tratando da psicose, o sujeito se encontra fora da cadeia significante, desprovido de significado, assim o significante funciona sozinho, voltando sobre si mesmo em círculos. Lacan traz uma preciosidade nesse ponto, ao tentar responder a um questionamento, como se dá o saber daqueles que não falam? E em seu percurso, traz o rato no labirinto, no qual ele irá aprender a dar um sinal, a partir de um signo, então a questão do saber se torna em aprender.
Miller, por sua vez, faz uma analogia aos analistas-ratos, aqui, o analista supõe ao psicótico um saber-fazer com lalíngua, sendo assim, esse analista, para se prestar a aprendizagem, se faz como sujeito vazio, posto a trabalho pelo saber já-posto no psicótico, ao qual ele supõe algo para além do enunciado. Um inconsciente a “mar-aberto”, no qual o sujeito se põe a velejar na tormenta de um gozo sem freio e o analista é um vazio que o acompanha, talvez algo de um amor possível, de outra ordem, possa se instalar, para que esse acompanhante possa, na singularidade de cada caso, com seu desejo do analista, poder se lançar nesse Mar.