Wilker França Associado do IPB Esse texto é fruto de alguns questionamentos surgidos a partir…
DÓCIL AOS DITOS E AO DIZER1
Daniela Nunes Araujo
Associada ao IPB
Como num tempo de compreender, começo afirmando que trago aqui algumas reflexões, iniciais, que tangenciam a infância, para entrar na conversa acerca da questão trans, tão atual. Seria ela uma nova face do malestar? Como situamos a criança no processo [decisório] de mudança de sexo? De intervenções possíveis porém tão tempranas no corpo? Quais as repercussões psíquicas da entrada cada vez mais cedo no ritmo de bloqueadores e terapias hormonais, químicas e cirurgias? Podemos afirmar que vivemos uma passagem do triunfo da religião para o triunfo da ciência; esta, mantendo a infância [não mais a criança apenas] como objeto a serviço da lógica e do discurso capitalista?
Miller (2021) provoca com a temática da docilidade ao trans e aqui deslizo para a docilidade aos ditos e ao dizer, da criança. Para Lacan (1972-73), “que se diga fica esquecido detrás do que se diz no que se ouve” (p. 26). De que se trata, portanto, quando crianças são ditas trans [e suas derivações] por outros? De que se trata quando crianças se dizem trans? Quem as tem escutado? Que se escuta delas? Que se faz com o que se escuta das crianças?
Clotilde Leguil (2016) sinaliza que se o gênero pode ser tomado para além das normas, excedendo-as, ou mesmo fora delas, deve-se ao fato dele ser da ordem de uma interpretação singular de cada sujeito acerca do seu ser sexuado. Ele se inscreve de maneira singular na história de cada um e justo pelo fato dele se remeter às conjunturas primordiais do sujeito, à sua marca de fabricação, diferença absoluta, não se configura como uma obrigação a cumprir com imposições sociais. Mas quem foi mesmo que disse que o que uma criança fala deve ser tomado ao pé da letra?
Agnès Aflalo (2021) lembra que frente ao sofrimento da criança, suas queixas devem ser escutadas, porém interpretadas. Faz-se necessário responder à criança e fazer ressoar a causa inconsciente dos sintomas. Essa causa é feita com palavras, com imagens, mas também com um gozo que é paradoxal, uma vez que, ao mesmo tempo que satisfaz, faz sofrer. Quando se escuta, portanto, e se responde de boa maneira, constata-se que uma criança pode construir um novo equilíbrio. Ela ainda destaca que, justo por isso, muitas crianças [rotuladas em sua maioria com o diagnóstico de disforia de gênero] podem vir a prescindir da tecnologia científica, dado que quase 90% das que foram ou poderiam assim ser diagnosticadas, quando chegam na idade adulta se arrependem dessa escolha. Traz inclusive o dado das primeiras queixas contra médicos que praticaram esses tratamentos. Por outro lado e de modo à leitura do panorama social, entre os adultos, apenas 5% dos que demandaram ou obtiveram a redesignação, expressam arrependimento pela mudança. Com isso, evidencia-se o peso da idade na percepção daquilo que faz sofrer: muda muito.
Para Lacan (1980-81), o estatuto do corpo só se apreenderia a partir do mal-entendido; desde antes fazemos parte da linguagem confusa dos nossos antecedentes e o grande feito da psicanálise seria justo o de explorar o mal-entendido com o fim de revelar uma fantasia. Por isso interrogo se o triunfo da ciência coloca em jogo e autoriza passagens ao ato e todas suas conseqüências. Como respeitar a dignidade da criança enquanto ser a advir, sujeito em constituição?
Paulo Leminski (2013), brincando com a harmonização das palavras na década de 80, escreveu o seguinte hai kai: se nem for terra/ se trans for mar (p.142).
Hoje, a partir das hormonizações em questão, indago daquilo que se ouve naquilo que se diz: se nem for menino ou menina, que nos cabe, enquanto praticantes da psicanálise, transformar? Quais as nossas responsabilidades aí?