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O que Ensina a Psicanálise?

Kazuhiko Nakamura . “Dali with a liquified mustache”
Kazuhiko Nakamura . “Dali with a liquified mustache”
Daniela Souza Araújo
Associada do Instituto de Psicanálise da Bahia

O que ensina a Psicanálise, sendo impossível ensinar um saber? A que se propõem os psicanalistas quando se recusam, como parte do processo de formação, a ensinar a Psicanálise? Tenho passado meses intrigada com essa provocação. É preciso dizer que iniciei minha jornada de formação em Psicanálise muito recentemente e que o lugar ocupado por seus transmissores tem sido, definitivamente, o de não ensinar um saber. Somou-se a esse meu desassossego reconhecer os psicanalistas que transmitem a Psicanálise nos seminários que frequento como sempre muito gentis, escutando atentamente nossos pedidos por significação, acolhendo os furos despertados por meio de seus diferentes dizeres, e, mais ainda, respondendo-nos com o que chamo de respostas psicanalíticas.

Sim, respostas psicanalíticas. É como apelido a ausência de confirmação ou negação de algo que esperava receber ao me dirigir ao outro. É a falta que transfiro e retorna sob a forma de enigma, me fazendo perceber um furo ainda maior do que eu imaginava possuir. Respostas psicanalíticas me tiram a paz. Passo do ódio ao desejo, do desejo ao trabalho e só então se abre um canal que parece tudo captar, que me faz deslizar de uma coisa à outra, misturando surpresa, encantamento, horror, buracos e reconhecimentos, e que, frequentemente, provocam mais furos, e finalmente amor. De repente me parece que estou aqui pensando sobre um ensino que provoca efeitos de livre associação e que opera a partir da transferência, como em uma análise.

Será a proposta de ensino da Psicanálise a de operar como a ética de sua prática clínica? Uma proposta de transmissão que dá lugar de primazia à enunciação, ao equívoco, à indeterminação e ao singular, que é oposta à produção de um conhecimento generalizável, é também uma aposta no estilo. Será o estilo a capacidade de transmitir a Psicanálise como arte? Leio Freud e Lacan e tenho essa impressão sobre seus ensinos.

Recorro à Abertura desta coletânea nos Escritos (1998). Referindo-se à famosa citação do Conde de Buffon (2011), proferida durante seu discurso na Academia Francesa, Lacan (1988: 9) introduz: “O estilo é o próprio homem”. Ao nos propor aderir a essa fórmula – “o estilo é o próprio homem” –, Lacan (1988,9) nos provoca a antes questionarmo-nos: “o homem a quem nos endereçamos?”. Esclarece em seguida que os textos reunidos nos Escritos foram organizados para “esse novo leitor” (1988, 10) da Psicanálise.

Ao estabelecermos que o estilo é o homem a quem Lacan se dirige, corremos algum risco de nos identificarmos com esta certa identidade de homem, de leitor, aprendiz de um ensino? Bem, isso se desfaz rapidamente. Brincando e poetizando com as palavras de A carta roubada, ainda nos Escritos, Lacan subverte a noção de homem-identidade para a de sujeito e deixa entender que é apenas ao sujeito do inconsciente que ele se dirige em seus Escritos. Parece se dirigir, desde a saída, ao sujeito que se produz ao final de uma análise. Escancara seu desejo de que o estilo que o endereçamento dos seus textos impõe leve o leitor a colocar algo de si. Colocar algo de si onde? No lugar da inconsistência, da contradição, da ambivalência, da fratura provocada pelo efeito da palavra.

Um convite para que cada um coloque algo de si, de sua própria poesia. A Psicanálise, pelos seus próprios fundamentos, não pode ser universalizada. Mas, ao transmiti-la como arte, parece-me que Freud e Lacan tornaram-na viva, imortal.


Referências
BUFFON, George-Louis L. Discurso sobre o Estilo. [s.n.] Covilhã: LusoSofia: press, 2011;
LACAN, Jaques. Escritos.1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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