Wilker França Associado do IPB Esse texto é fruto de alguns questionamentos surgidos a partir…
Ser sexual quando o que se espera é ser um gênero: a psicanálise, o sujeito e a invenção de uma sexualidade nos tempos de hoje
Cauan Antonio Silva dos Reis
Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia (PPGEL/UNEB); Especialista em Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana pelo Instituto de Psicanálise da Bahia (EBP-Bahia/BAHIANA). Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE). Atua na clínica como psicanalista, é docente universitário e escritor. E-mail: cauan_reis@hotmail.com
Se em psicanálise, quando falamos de masculino e feminino não estamos, necessariamente referindo, respectivamente, homem e mulher (a menos que esta seja a proposta de aplicação conceitual), como entender e conversar/dialogar sobre o gênero ou sobre a identidade sexual em espaços não psicanalíticos? É necessário, portanto, situar o lugar de onde o psicanalista fala sobre o seu saber, sobretudo daquilo de que o discurso psicanalítico tomou para si há tempos, como elemento fundamental de suas proposições teóricas: fala-se de um sujeito, descrito como sujeito da linguagem ou sujeito do inconsciente; fala-se de uma articulação significante deste com um corpo que lhe é dado e sobre o qual depositará uma singular significação.
Masculino, feminino, com base nisso, são identificações profundamente subjetivas que contornam a percepção de um corpo, traduzido e significado culturalmente. É exatamente este fato, este o ponto, o laço e articulação com o discurso social, que nos faz quebrar a ideia do binarismo (ou se é homem ou se é mulher) presente nas mais tradicionais culturas, no que diz respeito aos estudos sobre os gêneros.
Estas reflexões introdutórias, baseadas na leitura das novas formas de manifestação da identificação (e identidade) sexual, nos fazem considerar que estamos em um tempo cuja construção filosófica aponte, talvez, para um tempo pós-lacaniano[1] de compreensão sobre as novas manifestações subjetivas no que diz respeito a saber-se homem, mulher, nenhum dos dois ou outro[2] – com isso, compete considerar que nomear é precisamente um ato significante. Dizer que há uma posição masculina ou feminina não é suficiente para descrever as especificidades que condicionam as diferenças atribuídas ao sujeito-homem e ao sujeito-mulher, tal qual significado socialmente, em um tempo que chamo aqui de pós-lacaniano. Então, o que podemos entender daquilo que escutamos hoje? Sabemos que a posição revela um ponto aonde o sujeito se articula, a partir do seu sintoma, com o seu desejo e só então empreende uma escolha de objeto, que é por ele libidinizado.
Psicanalistas, há tempos, se debruçam a revisar o que fora dito e apresentado tanto por Freud quanto por Lacan nos seus respectivos tempos[3], no que diz respeito ao papel do inconsciente na produção de saberes que suponham a diferenciação sexual – o tempo hoje é outro. Diante disto, novas questões nos são colocadas a partir de leituras propostas sobre o assunto, como na obra O ser e o gênero: homem/mulher depois de Lacan (2016), da Clotilde Leguil.
Ser sexual quando o que se espera é ser um gênero é a premissa para considerarmos uma questão: estaríamos em um tempo de insistência da significação do “gênero” ou de validação da singularidade sexual? O ser passa a ser aqui um espaço de identificação e assunção de uma posição frente a Um[4] discurso: o singular, em nome próprio. De certo que isso por si só não aparenta ser novidade, pois, há tempos, sabemos que a psicanálise intensiva busca corroborar o fato de que uma análise só se produz a partir do Um, que transferencialmente se interpõe como elemento essencial da profusão singular do ser de cada sujeito.
A psicanálise como um campo produtor de discurso, evoca, portanto, uma dimensão social da articulação simbólica, real e imaginária, invocando o laço social como um modo de traduzir um a dizer (a ser dito) sobre aspectos que ultrapassam as barreiras de um corpo uno e atravessam o corpo social[5]. Assim é: como traduzir o saber sobre uma identidade sexual, desvendar o enigma da sexualidade singular, de modo a nos fazermos compreendidos por não psicanalistas (mas também pelos psicanalistas)?
Esta é uma reflexão essencialmente prática, visto que lidamos com pessoas em suas mais diversas formas de se articular com o seu próprio sexo, seja pela via da posição ou da escolha. Esta reflexão remete a ideia do Um proposto pelo saber lacaniano, que diz respeito às subjetividades construídas sem o ponto nodal a partir da queda da supremacia fálica, sem gravidade, que marca aspectos com ampla flexibilidade e apelo ao imediatismo na forma de estar e ser no mundo. O conceito de Um remete ao traço unário, marca singular impressa no modo de gozo do sujeito, insígnia do desejo, assim expresso: “a partir da análise do cogito cartesiano, Lacan situa o fundamento da identificação inaugural, a do sujeito distinto do eu, no traço unário, essência do significante, que é o nome próprio” (ROUDINESCO E PLON, 1998, p. 365)
Estamos inseridos em um campo, no tempo, dos novos modos de subjetivar e isto não vem desacompanhado da nomeação. Tempos fluidos, possíveis, de movimentos de luta e resistências. A resistência, aliás, é um conceito bastante familiar à psicanálise, que evoca problematizações acerca de gozo e de desejo. Em uma análise intensiva, sabemos, o processo de elaboração de conflitos psíquicos carecem de uma intensiva ação do mecanismo da resistência que, com base no aporte transferencial, pode encontrar um ou mais caminhos de resolução do mal estar nos sujeitos. A transferência é um importante mecanismo que, tanto pode funcionar como motor de uma análise quanto como obstáculo ao seu curso. E o que se inscreve numa resistência que incide sobre um efeito do laço social, a partir de um espaço identificado subjetivamente? Aqui, propõe-se reflexão de um hasteamento da bandeira do tradicionalismo ortodoxo da clínica[6].
Dialogar, que implica escuta e atenção flutuante, sobre o gênero é reconhecer o papel sociocultural na constituição do sujeito de linguagem que se constitui a partir de uma articulação significante. Inserir a produção de saber sobre o ser, neste contexto, parece ser de igual importância, pois evoca a ordem do desejo e da relação do sujeito com seus objetos sexuais eleitos como significativos. O ser pode ser tomado como um representante do gênero para alguns, mas não para outros, muito menos para todxs[7]. Aos que se colocam à margem, fora da identificação edípica mitológica, que lugar lhes é reservado?
Situamo-nos em um tempo de descobrir novos rumos para o ser dentro de uma fogueira inflamada de questões sobre o gênero. No plano dos sujeitos inventados por si mesmo, sob a alcunha de alguns outros, identificamos o consumo de objetos descartáveis, e que podem ser mutáveis e transmutáveis.
O consumo, herdeiro atual da entronização do mercado, passou a ocupar um lugar na nossa subjetividade que pode referir-se à realização de uma relação na qual os neuróticos estão apaixonados/ mortificados por um mestre perverso que sabe como gozar (KEHL, 2008) e que, ademais, democraticamente disponibiliza seu Saber a todos, formando o imperativo: Gozem! Mas gozem comigo (SARTI E TFOUNI, 2013).
Talvez não devamos pensar tanto a psicopatologia das normalidades ou mesmo das a-normalidades sexuais, mas pensar as possibilidades de ser dentro do processo de invenção de uma identidade, que é substancialmente sexual (e isso não deve implicar, necessariamente, numa redução binária de homem ou mulher). As fronteiras tornaram-se fluidas e isso possibilitou adentrarmos a vizinhança além-fálica pra verificar se o objeto disposto neste entre território ainda reserva o seu encanto, ou se é desejo de outra coisa. Teria a lógica fálica ainda falo, digo, fôlego para explicar a divisão psíquica que conduz o sujeito para uma identificação sexual?
Em uma videoconferência concedida à Escola Brasileira de Psicanálise, seção Bahia, Marcus André Vieira (2020) questiona sobre “quem orienta a diferença [sexual] hoje?”, afirmando não ser mais Deus, nem mesmo a tradição. Com isso, elegemos novos representantes, cada um ao seu modo, obviamente, o que sugere apontar para o tão discutido discurso democrático.
Ainda há um grande e extensivo corpo gozante feito para produzir questões e ainda mais dúvidas sobre quem sou e/ou quem é o Outro (aquele implicado na produção imaginária), haja vista ainda mantermos a singularidade de sermos sujeitos falantes. Leguil (2016), no seu livro, discute o caso Édouard Louis[8] em seu processo de descoberta/produção sexual: “o riso vem dizer que ele não está mais ali onde o outro o nomeia, mas alhures. O riso vem dizer que, ao salvar seu desejo, [Édouard] encontrou como se inscrever no mundo, para além das normas”.
Em psicanálise não é possível dizer tudo, algo sempre falta; como também é no campo da sexualidade. Por isso vemos aqui questões, mais do que respostas, para que possamos pensar sobre se o psicanalista, que ocupa este lugar no tempo de hoje, está atualizado de sua própria significação sexual. Os movimentos culturais vão tomando forma porque os sujeitos vão renovando os seus modos de gozar, de desejar e de significar. Continuamos olhando, mas o que se vê parece ser cada vez mais singular, mais ainda aos olhos de quem deseja, muito mais do que de quem enxerga. Como é na poesia: o amor não tem sexo; aquele cujo desejo é causar o desejo do outro deve estar situado em que ponto da significação sexual? É preciso reconhecer o potencial criativo do ser para conseguir ascender a uma invenção.