Wilker França Associado do IPB Esse texto é fruto de alguns questionamentos surgidos a partir…
Virginia Woolf, entre a psicose e a escrita
Caroline Cabral Quixabeira
participante da Seção Leste-Oeste da EBP
A estrutura da psicose se dá pela rejeição (verwerfung) da afirmação primordial (bejahung) fazendo com que o sujeito psicótico tenha uma relação com o simbólico diferente do neurótico e do perverso. Ele terá acesso ao simbólico na medida em que se utiliza da linguagem, entretanto, carente da significação oferecida pelo Nome-do-Pai, estará a mercê da invasão do real. (LACAN, 2010; WARTEL, 2007)
O psicótico é constantemente invadido pelo real e, em sua busca para instaurar uma defesa, ele recorre ao imaginário, formando o delírio. Essa é a tentativa de cura do psicótico que, por meio da realidade construída, cria uma via de compreensão de modo a evitar a invasão desmedida do real. Todavia, esse mecanismo não funciona de maneira apaziguadora para todos (FREUD, 2010).
Ao falar de real, recorremos a Miller, em seu seminário El Ser y El Uno: “no es seguro que lo real tenga una esencia; por el contrario, es por el sesgo de su existencia que lo real se impone y apaga cuanto se refiere a su esencia”[1] (MILLER, 2011, p. 49). O real coloca-se no campo da experiência, em um impossível de simbolizar.
Por conta disso, o sujeito psicótico é permeado por uma angústia. Assim, um dos caminhos para lidar com a angústia que o invade é a busca dentro do tratamento analítico da construção junto ao sujeito de um savoir-faire com esse real, uma suplência ao nome-do-pai que viria como organizador do discurso. E o ato da escrita que se coloca como uma via de tratamento disso que o invade (LAIA, 2014).
Virginia Woolf apresenta-se como um exemplo dessa saída pela escrita. Sua produção literária conta com mais de trinta obras publicadas, sendo uma autora conhecida por seu talento em explorar os limites do cotidiano e do banal. Tal fato é bem ilustrado na sua famosa obra Mrs. Dalloway (1925). Entre suas obras famosas, figuram ainda Ao Farol (1927), Orlando (1928) e As Ondas (1931).
Entretanto, Woolf não era conhecida somente por seus livros, como também por sua precária saúde mental. Em diários, ela relata seus sintomas depressivos, marcados por uma vontade intensa de morrer, além do delírio de inferioridade, sintomas psicóticos com alucinações – principalmente auditivas – e, em outros momentos, sintomas maníacos com uma grande excitação corporal, incapaz de ficar parada. A existência desses fenômenos era o ponto central que fazia surgir sua produção literária. Em uma passagem de seu diário, de 8 de setembro de 1929, comenta a ação que esses sintomas possuem sobre a sua escrita:
[…] i’ve written some interesting books, can make money, can afford a holiday – Oh no; one has nothing to bother about; and these curious intervals in life – I’ve had many – are the most fruitful artistically – one becomes fertilized – think of my madness at Hogarth – and all the little illness – that before I wrote the Lighthouse for instance. Six weeks in bed now would make a masterpiece of Months[2] (WOOLF, 1954, p. 143).
Nesse trecho, Virginia mostra como o efeito do período em que passa em sua “loucura” – como ela mesma denomina – serve como combustível para a criação de suas obras primas. Em outro trecho, de 16 de fevereiro de 1930, ela traz novamente a questão:
I believe these illnesses are in my case – how shall I express it? – partly mystical. Something happens in my mind. It refuses to go on registering impressions. It shuts itself up. It becomes chrysalis. I lie quite torpid, often with acute physical pain – as last year; only discomfort this. Then suddenly something springs[3] (WOOLF, 1954, p. 146).
Ao longo de seus diários, é possível encontrar outras passagens que marcam a relação existente entre sua doença e sua produção literária. Woolf vivenciava um ciclo em que, enquanto escrevia, sentia-se bem e, ao terminar a obra em que estivera trabalhando, novamente era habitada por seus sintomas. E isso não lhe passava despercebido.
Antes de se encaminhar para o riacho dentro de sua propriedade e encher seus bolsos do casaco com pedras, deixou uma carta de suicídio para o seu marido, Leonard, na qual coloca o seu medo de um novo período de enlouquecimento, em que não sabia se seria capaz de se recuperar.
Querido, tenho certeza de que enlouquecerei novamente. Sinto que não podemos passar por outro daqueles tempos terríveis. E, desta vez, não vou me recuperar. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Por isso estou fazendo o que me parece ser a melhor coisa a fazer. Você tem me dado a maior felicidade possível. Você tem sido, em todos os aspectos, tudo o que alguém poderia ser. Não acho que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes, até a chegada desse terrível doença. Não consigo mais lutar. Sei que estou estragando a sua vida, que sem mim você poderia trabalhar. E você vai, eu sei. Veja que nem sequer consigo escrever isso apropriadamente. Não consigo ler. O que quero dizer é que devo toda a felicidade da minha vida a você. Você tem sido inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer que – todo mundo sabe disso. Se alguém pudesse me salvar teria sido você. Tudo se foi para mim, menos a certeza da sua bondade. Não posso continuar a estragar a sua vida. Não creio que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes do que nós (WOOLF, 1941/2020)
Partindo do que foi exposto sobre Virginia, a escrita ao longo de sua trajetória funcionou como uma possibilidade de limite. Por meio da produção, Woolf foi capaz de bordear, mesmo que temporariamente, o real que a invadia. O ato de escrever vem como uma via para o sujeito psicótico construir uma relação com o simbólico que não perpassa pelo Outro da linguagem. (MAIA, 2012).
O neurótico se utiliza da inscrição simbólica como uma maneira de se proteger do real, ao utilizar a sustentação que sua inscrição no discurso lhe dá (ALVARENGA, 2000). O psicótico pode utilizar a escrita para a produção desse lugar limite, em que o ato de escrever promove junto ao sujeito o estabelecimento da possibilidade de uma nova ordem simbólica com o mundo. Esse ato funciona como a criação sintomática, na qual, mesmo manca, o sujeito é capaz de se proteger da angústia e mascarar o modo psicótico de existir. (LACAN, 2010; WARTEL, 2007)
Virgínia, ao longo de sua vida, fez da sua escrita uma possibilidade de tamponamento que colocava o limite aos sintomas psicóticos que irrompiam, ao mesmo tempo que era por conta destes sintomas que surgiam as ideias para os seus livros. Ao se deparar com aquilo que não era capaz de significar, utilizava o ato de escrever como ponto de basta para a irrupção da qual era afetada. Entretanto, esse mecanismo sintomático, ao funcionar em formato cíclico com o que de sua psicose não era passível de ser evitada, encaminhou Woolf para um ponto final, para além da escrita, sua própria morte. (Morales, 2008)