Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
A escolha pelo sujeito no diagnóstico de crianças e adolescentes
Carolina Vieira de Paula
Aluna do curso Teoria Psicanalítica de Orientação Lacaniana (TPOL) da Escola Brasileia de Psicanálise Sessão Bahia (EBP-BA)
É preciso escolher: o sujeito ou a sociedade. E a análise está do lado do sujeito. A análise teve esse poder de fazer com que a sociedade se tornasse mais porosa ao sujeito. Os agentes do discurso do mestre não estão exatamente no tempo desse aggiornamento e se a psicanálise tem uma missão em sua direção é a de aperfeiçoá-los quanto a isso: as normas sociais não terão mais superioridade que a norma singular, um sujeito, tendo alcançado a autenticidade de seu desejo, pode inscrever o contrário com relação à ordem que deveria dominá-lo[1]. (MILLER, 2008, pg.20)
No trecho inicial de Coisas de Fineza em Psicanálise citado acima, Miller nos convida a reafirmar a escolha pelo sujeito ao revés da sociedade e, deste modo, nos impele a usar o dispositivo analítico com o fim de oportunizar a escuta e a leitura da singularidade para além das normas sociais.
Sobre o sujeito da psicanálise é preciso esclarecer que não se trata de uma substância individual, sujeito psicológico. Trata-se de um efeito da divisão própria ao funcionamento da linguagem, que é marcada pelo “Sujeito Outro” a quem é suposto o desejo.”[2] O sujeito de Lacan é, portanto, o sujeito do inconsciente, o sujeito do significante e será necessário distinguí-lo tanto do indivíduo biológico quanto de qualquer evolução psicológica classificável como objeto de compreensão.
Contudo, sobre a posição maiúscula do Sujeito na psicanálise, inclusive no diagnóstico de crianças e adolescentes é necessário destacar que:
“há modos distintos de fazer com a linguagem (…) assim, temos crianças que não falam, que não brincam, que não se submetem ou que estão sob efeitos inespecíficos de distúrbuios orgânicos; que nos interrogam, forçando-nos a considerar o modo pelo qual o Sujeito, como efeito (e não substância) da linguagem e da fala, (…) está ligado à única substância em jogo na psicanálise: o gozo”. (VOCARO, 2005, p.27)
No presente caso, me sinto convocada, ante ao apelo de Miller, a pensar, à luz da psicanálise e da teoria lacaniana do “tempo lógico[3]” prevista no Seminário 11 de Lacan, os diagnósticos da clínica com crianças e adolescentes, levando em conta a advertência de que profissionais de saúde precisariam adiar compreensão e evitar conclusões precoces que passam do instante de ver, o corpo, ao momento de concluir, o agir na realidade. Sem que haja espaço para as elaborações, retroações e ressignificações da cadeia significante características do tempo de compreender.
Para tanto, é preciso considerar a relevância dos dados de realidade que apontam para uma epidemia de diagnósticos de transtornos mentais, especialmente autismos e transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), em crianças e adolescentes[4].
E, ainda, torna-se necessário expor a experiencia pessoal desta escrevente no atendimento uma paciente que aos dois anos foi levada dormindo ao médico psiquiatra infantil e, ainda desacordada no colo da mãe, foi diagnosticada como hiperativa, com fundamento exclusivamente na fala da genitora, e tendo recebido prescrição de medicação correspondente.
Neste contexto de foraclusão do “tempo de compreender[5]” nos diagnósticos de crianças e adolescentes, a singularidade do sujeito é apagada e substituída por um ideal de sucesso desenvolvimentista que “em tese” serviria para todos, torna-se ainda mais relevante aceitar o convite de Miller visto que, nesses casos, urge tornar a sociedade mais porosa ao sujeito.
De início, é preciso destacar que os constructos criança e adolescente, para a psicanálise, são classificações gerais menos relevantes, visto que o foco de nossa práxis e objeto da epistemologia psicanalítica é justo o sujeito e sua singularidade, resto do cogito de Descartes que orienta as ciências positivas, tais como a medicina, a psicologia e psicopatologia. Isso porque, em verdade, para a epistemologia da psicanálise, os analisantes são sujeitos atemporais, pois o inconsciente é um só, independentemente da idade, do sexo ou de qualquer outra classificação.
Noutro ponto, é necessário mencionar que, segundo Lacan, a dimensão imaginária da experiencia do Outro, seja ele família, escola, profissionais de saúde ou analista, acerca do que é ser uma criança ou adolescente, os deixa surdos ao discurso singular do sujeito. Dessa forma aduz Lacan que: “pela própria estrutura instaurada pela relação do sujeito com o Outro enquanto lugar da fala, algo falta no nível do Outro. O que ali falta é precisamente o que permitiria ao sujeito se identificar com o discurso que ele profere”[6].
Neste mesmo sentido, vale lembrar que Freud sofreu críticas ao anunciar a existência de uma sexualidade infantil pois tal proposta fugia à dimensão imaginária do que era ser uma criança à época.
Desta feita, a teoria lacaniana propõe o uso do ato analítico fundado na relação transferencial, como meio para oportunizar que, na escuta e na leitura de crianças e adolescentes a singularidade de cada sujeito vá se apresentando, para além da demanda do Outro (pais, família, médico, escola etc) que aponta para um imaginário dever-ser da infância e da adolescência. Isso porque, segundo Lacan: “o sujeito tem de empregar, para se designar, algo tomado às suas expensas. Não às suas expensas como sujeito constituído na fala, mas às suas expensas como sujeito real”[7].
Assim, na clínica com crianças e adolescentes, muitas vezes atravessada pelo diálogo com equipes multiprofissionais orientadas por laudos técnicos e diagnósticos médicos e motivada pela demanda do Outro, é relevante a presença do praticante da “psicanalise verdadeira”[8].
Caberá ao analista, advertido por Miller, a tarefa de reconhecer “os efeitos da linguagem na doença intrínseca do ser humano como ser falante e como ser falado, isto é, como falasser[9]”. e, assim, se ocupar de construir os meios para que a singularidade do caso possa ser acolhida e sirva à reelaboração do saber clínico, implicando o sujeito analisante e preservando “o lugar do desejo na direção o tratamento”[10] de crianças e adolescentes.