Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
Bem dizer o feminino: do que ex-siste no corpo
Delza Eloy de Santana Gonçalves
“O excesso de mim chega a doer
e quando estou excessiva
tenho que dar de mim como o leite
que se não fluir rebenta o seio.” ¹
A psicanálise nos convoca a experimentar na carne suas postulações. E é, igualmente, da carne que um saber sobre o humano pode ser extraído e formulado. No entanto, Lacan nos desperta para o que é anterior a qualquer formulação, para o saber de lalangue, que assovia aquém das peripécias da linguagem. Onde fomos afetados, fissurados, e não há conhecimento que liquide esse mal-estar. Nos cabe, então, savoir-faire com isso.
O que ex-siste no corpo é o êxtimo, neologismo lacaniano para se referir ao que há de mais íntimo e, por outra face, externo, por permanecer fora do campo simbólico. O resto que escapa do banho de linguagem, por isso se conserva estranho (Gonçalves, 2014). Estranho, mas tão familiar que podemos cerni-lo no âmago do ser.
Ao construir a tabela da sexuação, Lacan (1972-3) faz a distinção entre o gozo masculino e o gozo feminino e, ressalva, isso não se restringe ao sexo biológico: “o homem, uma mulher, não são nada mais que significantes” (p.45). Logo, feminino é um modo de gozo suplementar. Falamos de um mais, ainda, um gozo que se abre ao infinito, além dos contornos precisos do falo. “Esse gozo que se experimenta e do qual não se sabe nada, não é ele o que nos coloca na via da ex-sistência? (Lacan, 1972-3, p.82).
Lacan (1972-3) aproxima o feminino e o místico, a dimensão do inefável que escapa à inscrição de um significante que lhe contenha, portanto, ex-siste aos discursos e só pode ser nãotodo apreendido, Um a Um. Assim como A mulher, não há significante que a vista toda, tampouco à todas. Nessa perspectiva, Brousse (2019) distingue o real do corpo do corpo enquanto semblante, “a carne humana não tem identidade” (p.27). Podemos dizer de um corpo de fêmea, um corpo capaz de gerar um filho; mas, o corpo da mulher, isso não há signo que o contemple, senão pela via do discurso, e esse, por sua vez, é plural e mutável.
Para seguir, trago trechos de O Leopardo é um animal delicado, de Marina Colasanti (1998), com suas letras enredadas à erótica e ao desencontro próprio dos sexos. Escolho esse conto porque ele nos dá o retrato de um corpo feminino, enquanto discurso, e também anuncia algo do gozo feminino, que pode tomar o corpo de uma mulher. Proponho uma discriminação forçada, haja vista que os três registros – real, simbólico e imaginário – formam um cruzamento indissociável.
Colasanti descreve a cena de uma mulher em seus afazeres domésticos, quando é surpreendida pela chegada de um evento na cidade interiorana onde vive:
“O pensamento deslizou sem ruptura para o seu armário, escolhendo mentalmente a roupa que ia usar, o vestido vermelho de bolinhas, porque tinha um jeito de seda e uma saia godê que lhe acariciaria as coxas quando andasse sobre os saltos altos em meio aos sons e à gente toda” (Colasanti, 1998, p.82).
No fragmento acima, apanhamos traços do feminino em nossa geografia – o vestido, as coxas, o salto alto. “Aproveitou para passar esmalte nas unhas, de pé sob a luz forte do espelho” (Colasanti, 1998, p. 83). Sublinho o fundo misterioso que permeia a narrativa e marca a mulher como aquela que esconde algo por trás do que mostra. O que, apesar da “luz forte”, permanece velado, convoca a interrogação freudiana: o que quer uma mulher? Laurent (2012) discorre sobre o silêncio que se instala nessa questão. Ao que não é descritível do gozo feminino, resta si-escrever, letra artesanal, inventada, que só se lê sob a “luz forte” da singularidade e, ainda assim, diz não tudo.
O conto desenha a busca da personagem por um encontro sexual, por um deleite que fosse capaz de tirá-la da apatia cotidiana. A apreensão lacaniana de um gozo não localizado, que transborda, refere-se a um acontecimento de corpo que pode desaguar tanto em estrago, o que Lacan nomeia devastação, quanto no deslumbramento, como narrado nesse trecho:
“Sentindo que na boca o céu se abria, permitindo que perfumes e sabores lhe invadissem a cabeça. Era fogo sobre a língua. E a língua se inundou para recebê-lo. O fino punhal da pimenta rasgou-lhe o nariz. A cor o aroma a quentura daquela comida deslizaram garganta abaixo abrasando-lhe o corpo” (Colasanti, 1998, p. 85).
Aqui as fronteiras entre dentro e fora tornam-se evanescidas. Com o codinome Leopardo, Colasanti circunda o inominável que ex-siste no gozo da personagem. Tão quanto delicado, o Leopardo é um animal visceral.
“Sentiu as unhas viscosas, olhou os dedos tingidos de vermelho, podia ser sangue, podia ser a luz […]. Limpou os dedos no vestido, ajeitou os cabelos com as costas da mão. Só então percebeu que tinha esquecido as sandálias” (p.89). O conto é finalizado nesse ponto, e eu também concluo, assinalando que um corpo de mulher goza no eco dos significantes que lhe fazem marca. Mas não só, pois lá antes da palavra fazer significância, há vestígios de uma pulsão que insiste e não cessa de não se escrever. Falamos do real, e “o real é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente” (Lacan, 1972-3, p.140).
Uma mulher pode ex-sistir, tornando-se, fazendo-se, nas sutilezas de seu próprio timbre. “Estou me criando […] Dói. Mas é dor de parto” (Lispector, 2019, p. 55). Bem dizer o feminino é transformar o silêncio da mudez em intervalos de escansão que possibilitam compor uma canção-corpo, como metaforiza Lacan ao falar do litoral, onde a imensidão do mar encontra alguma borda, não para conter sua potência, mas para possibilitar laços. Feminino é mistério. Ser mulher é invenção.