Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
Da escuta à leitura, a presença do (a) analista
Christianne Alcântara
Aluna do Curso Regular e do Curso de Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana do Instituto de Psicanálise da Bahia
“A arte de escutar equivale quase à de bem dizer.”[1]
Jacques Lacan
“Uma Torre de Babel, as pessoas não se escutam, não se entendem”. Essa era a queixa de uma senhora de seus 60 anos, na fila do supermercado. Referia-se a uma discussão protagonizada por dois homens que debatiam calorosamente sobre o impacto do Governo Bolsonaro nos preços dos produtos. Se as pessoas ao redor não compreendiam o que diziam, difícil imaginar o que eles, envolvidos com suas próprias falas, entendiam acerca do argumento um do outro.
A senhora foi a única a ousar tecer qualquer comentário, mesmo que em um sussurro, quase inaudível. Por longos dois minutos, o supermercado se aquietou para (pasmem!) escutar a discussão. Fez-se um sonoro silêncio ao redor. Tão sonoro, que seguranças do supermercado resolveram intervir e evitar que os consumidores fossem às vias de fato.
Convidados a se retirarem do ambiente, os dois homens saíram, gritando ao mesmo tempo “Petralha!” e “Bolsominion!”, de forma que até hoje eu não saberia dizer quem defendia o atual presidente ou quem era contra. Muito menos qual era o argumento de cada um para defesas tão apaixonadas, se é que existia algum.
Quando o silêncio ao redor se dissipou, os espectadores comentaram a cena, em busca de um “sentido” para aquele debate. Segundo Miller[2], “(…) tudo o que faz sintoma (…) tem um sentido e pode ser decifrado (…)”. Da minha parte, não ansiei por sentido algum, mas pelo fim do martírio que, para mim, é a tarefa de “fazer feira”. Não sabia, àquela altura, que o fato seria objeto deste artigo.
Miller[3] vai dizer que “(…) a psicanálise é um assunto de escuta (…)”, enquanto Laurent[4] vai destacar que o (a) “(…) analista, em primeiro lugar presente como escuta, introduz, com seu silêncio, uma demanda de fala por parte do analisando”. Ambos os autores trazem à tona a questão da escuta, embora o façam para depois introduzirem, respectivamente, Miller e Laurent, a leitura e a interpretação.
Volto ao acontecimento no supermercado e me recordo que percebi estarem os espectadores em busca de um “sentido”. Ou ainda perguntando uns aos outros, enquanto balançavam a cabeça em sinal de reprovação: “Qual é o sentido disso, afinal?”. Teria a pergunta, aparentemente retórica, ocupado o lugar da afirmação – que não foi pronunciada – “Isso não faz sentido.”?
Saindo do fato ocorrido (que me ressoou como uma provocação) para o que trata a Psicanálise, Miller[5] vai afirmar: “O que se escuta de fato é sempre o sentido, e o sentido chama sentido”. Eu me pergunto: Quando não se escuta o sentido, faltou a leitura? Ou seria uma eterna busca do sentido perdido, parafraseando o título de Proust[6]?
No supermercado, os homens discordavam aos berros, mas não se escutavam. Assim, seria impossível produzir diálogo. Os espectadores, por sua vez, embora atentos, não entendiam nem mesmo de que lado cada um dos protagonistas se posicionava e se questionavam sobre o sentido da disputa.
Não havia comunicação, havia monólogos. Cada um proferia o seu. O suposto debate, comparado a uma situação digna do mito bíblico da Torre de Babel, não se tratava de um esforço de comunicação. Sobre esse aspecto, em “O monólogo da aparola”[7], define-se que
“a aparola é no que se transforma a fala quando ela é dominada pela pulsão, quando ela não garante a comunicação, mas o gozo. É o que corresponde à fórmula de Lacan, no Seminário Mais, ainda: ‘Ali onde isso fala, isso goza’, que significa no contexto: isso goza de falar.”
Quem assistia à cena do supermercado, entre pasmo e incrédulo, não encontrava sentido porque, definitivamente, não se trata do sentido em si mesmo, nem muito menos do sentido perdido. Na fase final do ensino de Lacan, percebe-se um rebaixamento do sentido. E, mesmo antes, já se identificava um rebaixamento do sentido como significado[8].
No lastro do rebaixamento do sentido, Miller[9] defende que se explore o que a Psicanálise pode vir a fazer no campo da leitura. E ao ler “leitura”, compreenda-se “saber ler”. Sendo assim, não se trata de encontrar sentido no sintoma, nutrindo-o. Pelo contrário: ler um sintoma vai implicar em privar o sintoma de sentido.
A esse propósito, o mesmo autor define que a “(…) leitura, o saber ler, consiste em colocar a distância a fala e o sentido que ela veicula (…)”[10] e sentencia acerca do deslocamento, feito por Lacan, do enquadre edipiano para o enquadre borromeano: “(…) é o próprio funcionamento da interpretação que muda e passa da escuta do sentido à leitura do fora de sentido”[11].
Antes, porém, do “saber ler”, faz-se necessário entender a escuta como um ato que precisa estar despido de um saber, apesar da
(…) crença do analisando de que o analista tem em seu poder o saber no lugar do objeto demandado. Qualquer demanda implica a escuta, o silêncio da escuta como lugar reservado ao que, naquilo que se diz, excede a intenção. Essa escuta silenciosa vem marcar o lugar do desejo que, no discurso, se ignora[12].
Se a escuta silenciosa, por um lado, marca o desejo; por outro, marca a presença do (a) analista. No Seminário 11, Lacan[13] adjetiva o termo “presença do analista” como “belo” e o conceitua como “(…) uma manifestação do inconsciente, de modo que quando ela se manifesta (…) como recusa do inconsciente (…) isso mesmo deve ser integrado no conceito de inconsciente”. Assim, é com a presença do analista que o discurso analítico vai se instalar, seja pela escuta, seja principalmente pela leitura.
Em O inconsciente e o sinthoma[14], Miller ressalta que o discurso analítico coloca o (a) analista de frente com o singular. Mas lembra ainda que o (a) praticante tem direito também a sua singularidade. É essa singularidade que vai definir como escuta, o (a) analista. E ainda: como lê, o (a) analista. O dilema do “saber ler” é imposto, dessa forma, pelo discurso analítico.
Assim, saber ler o gozo onde o analisando não fala, mas o (a) praticante escuta. Saber ler o gozo onde não faz sentido, apesar da escuta. Como no supermercado, onde os espectadores escutaram, mas não encontraram o sentido. E era exatamente ali que estava o gozo. Ali, onde não havia sentido. É nessa direção contrária que a leitura é feita. Da escuta à leitura, o (a) analista, presente, deve tratar de tudo acolher. Não é precisamente isso que Miller vai compreender como uma orientação para a emergência do singular?