Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
Devastação como uma das faces do tornar-se mulher: o que tem o supereu feminino haver com isso?
Cintya de Abreu Vieira
Aluna Curso Regular IPB/Bahia, professora substituta da Universidade Federal do Tocantins
“Nenhum ser humano jamais se desligaria de mim com a mesma angústia com que me desliguei da minha mãe apenas porque nunca consegui me apegar a ela definitivamente” (FERRANTE, 2006, p.50).
“Minha mãe, que havia anos existia apenas como uma obrigação incômoda, às vezes como um tormento, estava morta. Porém, enquanto eu esfregava vigorosamente o rosto, especialmente em torno dos olhos, percebi com uma ternura inesperada que, na verdade, Amalia estava sob minha pele, como um líquido quente que havia sido injetado em mim sabe-se lá quando”. (FERRANTE, 2006, p.65).
Freud, em seu texto de 1933, A feminilidade, nos adverte que corresponde a singularidade da psicanálise não querer descrever o que a mulher é, mas sim pesquisar como ela se torna mulher. No longo caminho, que cada mulher é convocada a traçar na construção de sua própria feminilidade, já que se dada no uma a uma, Freud antecipou que a fase pré-edipiana tem uma grande importância e que a intensa ligação pré-edípica com a mãe deixa restos na vida de uma mulher.
A relação mãe e filha pode desembocar em uma devastação. A devastação sendo uma das modalidades do supereu feminino, como bem aponta Campos (2015). Ele ainda pontua o fato de a mulher ser não-toda fálica, pois de um lado, ela tem uma porção conexa à significação fálica, ao mundo dos semblantes, ao simbólico e ao imaginário, e, de outro, está ligada ao real, a falta de representação e a falta de significação. E, como diz Miller (2010), nisso as mulheres são mais amigas do real.
As mulheres por estarem do lado direito do quadro da sexuação, proposto por Lacan, no seminário 20, podem experimentar o gozo feminino. Slongo (2012) relaciona a visada ao infinito, absoluto e ilimitado do gozo feminino vinculado a noção de supereu e de pulsão de morte. Situando esse absoluto como aquilo que é sem laço, não depende de nada, incondicional e não respeita nenhum limite. Ela discorre que é esse ponto de infinito e absoluto que afeta o gozo feminino.
Guimarães (2014) falando a respeito da devastação amorosa, indica que a aceleração do gozo erotomaníaco na direção de um impulso incontrolável e devastador denuncia que o imperativo mortífero do supereu se infiltrou muito rapidamente nesse estado de gozo, que é inerente ao feminino. E ela faz uma diferença crucial entre o gozo feminino e o imperativo do supereu. Esclarecendo que o gozo feminino não é devastador, ao contrário, é fundamentalmente vivificante. Contudo, por estar situado no campo do silêncio, distante das palavras, tem uma tendência de sofrer os efeitos da infiltração do supereu. Logo, ao sofrer a intromissão do supereu, o estatuto real do gozo feminino passa a sustentar um imperativo goza num caráter mortificante inerente ao supereu, sendo uma vertente mortífera de gozo que se mantém sempre à espera de uma oportunidade para ativar sua imposição.
Sendo assim, vemos que o caráter mortífero do supereu feminino pode se infiltrar no gozo feminino, se apresentando na relação mãe e filha e nas parcerias amorosas de uma mulher, de forma devastadora. Logo, surge uma questão: qual seria a relação entre essas duas modalidades de devastação?
Campos (2014) discorre a respeito, recorrendo ao ensino de Miller, que na devastação, a demanda de amor dirigido à mãe, que se expressa mediante o real fora do simbólico, tem seu caráter potencialmente ilimitado. Logo, mais tarde, quando a filha alcançar sua condição de mulher, vai deslocar o objeto de amor e vai se dirigir ao seu parceiro, reimprimindo a mesma exigência infinita de amor que endereçava a mãe quando criança. E por essa demanda de amor ser infinita, signo da estrutura do não-todo no feminino, ela vai retornar do parceiro da mulher em forma de devastação, como antes retornava. E aí que o parceiro-sintoma se torna parceiro-devastação. Sendo a devastação a outra face do amor.
Vale destacar que a devastação não é o amor em si. Pois, como bem relembra Guimarães (2014), o amor vivifica uma mulher. Porém, torna-se padecimento e devastação, quando o imperativo superegoico se infiltra no excesso de gozo que vivifica o corpo, produzindo nele seus estragos mortificantes. Laurent (2012) diferencia o supereu feminino do supereu universal, cita que Lacan operou uma revolução ética na psicanálise ao dizer que o supereu é perigoso não pelo fato de ele proibir, mas porque ele empuxa ao crime, ele empuxa a gozar.
Como Slongo (2010) assinala que Miller, no livro Elucidación de Lacan, ao se referir ao supereu feminino é radical:
“não há mais seres do dever do que as mulheres! Elas podem se converter num supereu que exige, exige, indefinidamente até o infinito. Trata-se de um apelo ao Outro, uma exigência ao Todo que repousa sobre o sentimento de não ser nada. E conclui que, O sentimento de não ser nada sempre esconde um delírio de grandeza de que o Outro o é todo” (p. 139).
O amor sem limites dirigido da filha para mãe que volta para ela como devastação, busca uma resposta para a questão feminina: Afinal, o que é ser mulher? A filha dirigi a demanda para mãe para receber um significante que dê conta do ser da mulher. E aí, ela se devasta. Pois, a mãe não oferece esse significante, não porque não quer, mas porque não tem, ele não existe. Quando a filha crê que A mulher existe e busca a resposta para isso na mãe, ela cai do lugar de objeto precioso para dejeto e se devasta. O que também pode acontecer quando ama sem limites a um homem. Enfim, a devastação ocorre quando o supereu ama, com seu amor paradoxal, com seu amor louco, como salienta Campos (2015).
No processo de tornar-se mulher, sendo um processo que se inicia e nunca termina, já que em diferentes momentos da vida de uma mulher, ela pode se deparar com questões da própria feminilidade, nesse processo pode haver a devastação. Pois, em algum desses momentos ela pode buscar a resposta para feminilidade na crença do semblante, ao invés de se servir dele para inventar a própria feminilidade, ela pode cair no engodo que A mulher existe. E como já nos advertiu Lacan, no seminário 20, isso é uma falácia, pois cada mulher há que inventar modos de fazer com seu gozo feminino e de usar os semblantes.
Freud (1933/2018) já havia falado na conferência de 33: “Se quiserem saber mais sobre a feminilidade, então perguntem às suas próprias experiências de vida, ou voltem-se aos poetas, ou esperem até que a ciência possa lhes dar informações mais profundas e mais bem articuladas” (p. 341).
A literatura oferece facetas das questões da feminilidade. Como a narrativa da autora, Elena Ferrante, no livro Um Amor incômodo (2017). Onde retrata a relação de Delia com sua mãe, Amalia. Delia, narra a história em primeira pessoa, a partir da morte de sua mãe e, mostra a intensidade dessa relação que ultrapassa a força da morte e pode ser tão invasiva e voraz como as ondas do mar. A relação delas parece ser um fluído que com muita facilidade se mescla, tornando difícil identificar onde começa uma e onde termina a outra.
Zalcberg (2007) diz que mãe e filha devem estar dispostas a fazer o luto do que, elas representam uma para outra, no que diz respeito a feminilidade, e que as manteve tão ligadas ao longo dos anos. Logo, essa perda permite que mãe e filha tenham acesso a seu próprio corpo e a seu próprio gozo, envoltos em uma pele própria a cada uma. Pois, as mulheres não fazem parte de um todo, da universalidade. Ela ainda ressalta que uma verdadeira separação de corpos e de sexualidade, ou seja, duas mulheres, o que genuinamente aproxima mãe e filha.
Percebe-se que, Delia confunde, em vários momentos da narrativa, seu corpo com o da sua mãe, através dos traços, das roupas, na forma de cuidar e de se ver. E na medida, que ela pode traçar algo de uma separação dela em relação a sua mãe, paradoxalmente, ela pode se aproximar dela de outra forma. Ainda que sua mãe estivesse morta, mas ela vai reacomodando suas memórias a respeito dela. E pode reconhecer o que há da mãe nela, mas sobretudo sua própria diferença radical como mulher.
Diante do que foi discorrido até aqui, fica uma questão: o que cada mulher pode fazer com os restos da relação mãe e filha, que não seja, necessariamente do campo da devastação?