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Freud analista: seus casos à luz da Orientação Lacaniana

Bernardino Horne
IPB. Bahia 

Sou Bernardino Horne, membro, na Seção Bahia, da Escola Brasileira de Psicanálise e, portanto, da Associação Mundial de Psicanálise.

Sou também associado do Instituto de Psicanalise da Bahia. Os Institutos, especialmente o da Bahia, estão profundamente enraizados à Escola.

Fui designado para abrir o nosso ano de trabalho.

O faço dando um abraço a cada um dos colegas e um abraço especial, de boas-vindas, a cada um dos futuros colegas.

Freud fundou um campo clínico e epistêmico novo, inexistente: o Campo do Inconsciente ou Campo da Psicanálise ou, como o chamamos, o Campo Freudiano.

Dentro de este Campo, a partir da leitura que faz Lacan durante os anos de seu ensino, se estabelece a Orientação Lacaniana do Campo freudiano.  Desde a morte de Lacan, Jaques-Alain Miller mantém um Curso que leva esse nome e incide nas direções dessa rede de estudos e textos que é o Campo Freudiano na sua perspectiva Lacaniana que, pensamos, é profundamente Freudiana.

Os que iniciam o Curso Regular começarão esta experiência ao trabalhar os casos clínicos paradigmáticos de Freud à luz do poder epistêmico da orientação de leitura que permite Lacan.

Esta orientação se caracteriza pela importância dada ao real, ao singular, ao mais íntimo de cada sujeito. É ali que apontamos, ao real último de cada um de nós, onde se encontra o sinthoma, ou seja, o nó inaugural do ser humano.

A estrutura de nosso Instituto, assim como a da Escola é, a rigor, formada como uma rede tecida de saber. Todo o campo freudiano em sua orientação lacaniana está constituído por uma abrangente e profunda rede de saber, algo vivo e vibrante em escritos, aulas, jornadas, congressos, encontros, revistas, a psicanálise pessoal e os controles; tudo em debate e trabalho constantes, incluindo hoje, em sua reflexão, os problemas cruciais e novos acontecendo no campo social e que se produzem em movimento de alta velocidade. A pressão do mundo exterior é tão forte que corremos o perigo de cair em um ambientalismo superficial ou em uma sociologia barata.

A psicanálise, à diferença com outras disciplinas, tende a se superficializar e desaparecer. Sem o nosso esforço continuado, desaparece, pois é inumana, porque vai contra ao que o ser humano procura, ou seja, a ignorância, o não saber, e inventa quantidades de formas de viver sem ter que enfrentar suas verdades. O desejo do analista, que sustenta o tratamento, é um desejo inumano, incomum, porque se dirige contra a repressão, contra a falsa ideia de que existe uma zona de conforto fora do saber e do verdadeiro.

Estaremos juntos dentro deste campo de estudo da psicanálise

Em 1904 – 218 anos atrás – Freud escreveu um texto com a intenção de distinguir as psicoterapias da psicanálise. Publicado em 1905 com o titulo de “As psicoterapias”.

Nele, Freud relata que Leonardo da Vinci, sentiu a necessidade de diferenciar, de separar o que é pintura do que é escultura.

Fazer teoria do que ele fazia.

A pintura, diz Leonardo, procede “per via di porre” o que, em italiano, quer dizer “pelo caminho de pôr, de colocar”.

Efetivamente, o pintor bota na branca tela o que tem na sua frente, bota, põe, enche a tela, com cores e com pastas de diversas texturas, tentando assim dar a ver a imagem, a ideia que está em seu espírito e que pretende transladar ao quadro.

Já a escultura, diz Leonardo, procede do modo contrário: não põe, não coloca, tira.

Procede, então, por outra via: “Per via de levare”. O escultor vai tirando pedaços do bloco de pedra que tem diante de si, restos, camadas de pedra que ocultam “a escultura que sempre esteve ali contida”.

Esta frase é de Leonardo.  A escultura está ali desde sempre… no bloco de mármore!!!

O escultor tem que saber fazer para que possa se tornar presente isso que existia e que estava ali desde o início.

Freud consegue fazer uma bela metáfora ao substituir a escultura pela psicanálise e a pintura pelas psicoterapias.

Compara as psicoterapias à pintura. Nela o analista, como o pintor, acredita saber o que será bom e coloca isso no sujeito, tratando o analisando como o pintor trata a branca tela.

A psicanálise, dirá Freud, procede, como a escultura, pelo outro caminho, pela “via de levare”, tirando, perturbando a fixidez das defesas e os falsos gozos fantasmáticos, para chegar ao que verdadeiramente é o ser, que dessa forma pode se tornar presente: Ser.

É tirando o que cobre, o que oculta, que o escultor chegará a essa única peça: uma escultura. Para dizê-lo com nossas palavras, é necessário um tempo para remover e poder chegar ao próprio, ao singular do Sujeito. Às ressonâncias e à iteratividade do gozo. O que é único de cada um de nós.

Esse existir feito de Gozo Um não está escondido no fundo de um saco. Está presente desde o primeiro momento ali, dentro da pedra e, em nossa clínica, a dificuldade se apresenta como repetição. Repetição de algo ruim, de fracasso ou de impotência.

Hoje, segunda-feira 7 de março de 2022, dia em que abrimos o nosso ano de trabalho em comum, podemos dizer que esta delicada metáfora que fabrica Freud, a partir de Da Vinci, continua tão válida quanto em 1904.

Esta intuição de haver algo único em nós, presente desde os inícios de Freud, encontra-se em Lacan também desde seus primeiros momentos.

Com efeito, no início de seu ensino em 1953, Lacan, no Seminário Livro 1, se refere ao final da análise.

Um parêntese: Um dos motivos de ser tão importante o passe, e o estudo e debate continuado sobre os finais de análise na Escola, é porque a concepção de final define a posição do analista no início.

Voltando ao nosso assunto do Seminário 1: Nas duas últimas páginas do capítulo 18, debate com um analista importante, Balint, as ideias sobre o final da análise.

Contraria a ideia de Balint de que no final trata-se de abandonar uma identificação ruim do sujeito para realizar uma nova identificação, desta vez com seu analista, por ser melhor do que a anterior. Ou seja, uma proposta de trocar de identificação, mas ficando sempre – seja ruim ou seja boa – como  algo que se toma do outro.

Na sua crítica, questiona a Ego Psychology, que se interessa pelo fortalecimento do ego. Lacan opina: “… o progresso de uma análise não diz respeito ao aumento do campo do ego, não é a reconquista pelo campo do ego da sua franja de desconhecido, é uma verdadeira inversão, um deslocamento, como um minueto executado entre o ego e o id”[1].

O fortalecimento do ego e a identificação com o analista, como ponto de detenção, são criticados, surpreendentemente, com um poema.

Nele já está em Lacan a ideia do singular, do Há Um.

E então lê a poesia, um dístico de Ângelus Silesius, no qual vemos de forma poética a mesma ideia de Leonardo e de Freud:

Contingência e essência

Homem, torna-te essencial: porque, quando o mundo passa, a contingência se perde e o essencial subsiste.[2]

E acrescenta:

“É disso mesmo que se trata ao termo da análise, de um crepúsculo, de um declínio imaginário do mundo, e até de uma experiência no limite da despersonalização. É então que o contingente cai – o acidental, o traumatismo, os obstáculos da história – e é o ser que vem então a se constituir”.[3]

Vejam como a técnica da escultura de Leonardo, que Freud considera como a orientação na análise, equivale ao que Lacan pensa do final da análise e, portanto, da orientação a se manter desde o seu princípio e durante o desenvolvimento de uma análise.

Esta diferença entre a via di porre e a via di levare, cria dois campos radicalmente separados e diferentes: O campo do Outro e o campo do Um.

Ou partimos do Outro para terminar com algo melhor, mas sempre do Outro, ou partimos do Um para chegar, através do Outro, ao mais íntimo e único do Um.

Essa diferença tem consequências.

Após esta introdução, junto a meus melhores desejos para cada um de vocês, quero dizer algumas palavras sobre dois assuntos: O valor fundante da clínica e sobre o real.

A clínica é o ponto de partida.

Será partir da clínica a construção da teoria em psicanálise. Sabemos que antes de 1900, época da publicação da “Interpretação dos Sonhos”, Freud encontrou um método para dar sentido às confissões dos analizantes interpretando os sofrimentos da mente humana ao par que construía uma teoria do sentido desde as inacreditáveis surpresas da clínica.

Lacan continuou o mesmo caminho. No início de seu ensino retomou os casos clínicos de Freud e, no Seminário 1, afirma que a grande descoberta de Freud foi o dispositivo psicanalítico. Isso foi o que permitiu a ele, ouvindo suas pacientes, elaborar uma teoria da mente e lançar as bases de seu funcionamento.

Com a morte de Lacan, em 1981, quando todos pensavam que Jaques-Alain Miller lançaria a consigna de Retorno a Lacan, ele propõe um retorno à clínica.

É fato que: o dispositivo analítico continua o mesmo apesar de grandes mudanças teóricas acontecerem.

O que é esse dispositivo?

Há uma regra fundamental do dispositivo analítico. Ela é estruturante. Assigna ao analizante o seu lugar e a sua função, que é a de falar associando de modo livre, e veremos que essa liberdade é relativa. Por outro lado, outorga ao analista a posição de silencio e a tarefa crucial de assumir o ato de interromper dito silencio.

A primeira frase na Introdução ao Seminário diz: O mestre (se refere ao Mestre Zen) interrompe o silêncio de qualquer maneira… E finaliza a frase ao dizer que cabe ao discípulo interpretar. A rigor vocês veem que a temporalidade da sessão não pode ser um standard governado pelo relógio.

Como falei, este dispositivo permanece firme desde antes da “Interpretação dos sonhos”, data que se considera como a do nascimento da psicanálise. Ainda usamos o mesmo dispositivo que cede ao analizante o início do discurso, a escolha do tema. A primeira palavra é do analizante.

O S1 de cada sessão é do analizante.

O crucial, o importante, é que este S1 traz consigo algo do primeiro gozo, do primeiro real de cada sujeito. Como conectar-se com ele e assim estabelecer o que chamamos de transferência ao real? Uma nova pergunta em pleno trabalho de respostas.

E agora, algumas palavras sobre o real.

O que é o real tão mencionado como norte da Orientação Lacaniana do Campo Freudiano?

O primeiro problema é que, quanto mais tentamos falar, definir, limitar o real, mais longe dele ficamos.

O real existe. Não conhece o $ujeito ou o ser. O real não tem ser.

Nele não tem como construir diferenças ou fazer conjuntos. O real não tem nome, não informa. Não há saber no real. É o negativo do verdadeiro, existe como exterior ao saber. Não faz laço. Não obedece nenhum sistema, não tem ordem.

O real é sem lei, diz Lacan no Seminário 23.

O real na clínica somente pode ser pensado como gozo. Dito de outra forma: o gozo é, na clínica, o modo como vislumbramos, como percebemos os rastros, os indícios do real.

Esta resposta exige retomar a questão perguntando-nos sobre o gozo. O gozo não é apenas um gozo, há gozos. O gozo pertence ao estatuto do existir. Este existir produz efeitos de ressonâncias, constitui, ao mesmo instante, uma satisfação vital e mortificante.

O desejo do analista é precisamente o desejo de aproximação ao real, de orientar-se ao real. Um desejo de abordar o inabordável e assim conseguir que o analizante possa chegar a um ponto sem sentido, final de sua análise, e ficar assim desabonado do inconsciente transferencial.

“Não há relação sexual” — é a primeira forma na qual Lacan diz da separação radical do real com o simbólico e o imaginário.

Em Piezas Sueltas, Miller diz do real: o real de Lacan é um negativo do verdadeiro, uma vez que ele não está ligado a nada, que está desatado de tudo, até mesmo de todo tudo. Não obedece a nenhum sistema, condensando o fato puro do traumatismo.

No inicio de sua vida como psicanalista, Lacan criticou o ensino nos Institutos da IPA. Escreveu vários textos, um dos quais se chama “A psicanálise e seu ensino”.

É um texto de fevereiro de 1957 e está dividido em duas partes: o título da primeira parte é “A Psicanálise e o que ela nos ensina”. O título da segunda é “Como ensiná-lo”?

A pregunta central de todo o texto, e que Lacan faz aos psicanalistas e a ele próprio, é sobre o real da formação analítica. Como o real se faz presente na experiência singular de cada um.

Na primeira parte, na qual comentará sobre o que nos ensina a psicanálise, há uma interrogação que não se apaga em torno do real.

Ele percebe que no inconsciente há alguma coisa que é “transcendente ao sujeito”.  Afirma que “dizer que o sintoma é simbólico, não é dizer tudo”. Neste momento, diz Lacan, Freud interrogava o sustento desta verdade com a concepção da pulsão de morte.

E acrescenta que, por perder este rigor psicanalítico e recusar esta interrogação de Freud sobre o real da pulsão de morte, os psicanalistas de hoje, tem caído num “ambientalismo declarado”.

A segunda parte, “Se isto é o que a psicanálise nos ensina… Como ensiná-lo?” é um texto é muito rico e destaco apenas uns poucos assuntos entre outros.

Abre com uma pergunta: “qual é, esse algo que a psicanálise nos ensina ser-lhe próprio, o mais próprio, o verdadeiramente próprio da psicanálise?”.

Finaliza dizendo que só podemos transmitir um ensino que mereça ser chamado de um retorno a Freud, pela via de transmitir um estilo. Vejam que o estilo de cada um tem a ver com o singular.

Em 1967, dez anos depois, no livro 7 “A ética da psicanálise”, Lacan inicia os primórdios do último ensino com um programa de investigação sobre o real.

A pergunta pelo real está intimamente relacionada ao fato de Lacan, nesse momento da sua reflexão, se questionar sobre a relação entre o Um e o Outro e, assim, esse programa perdurará até o final da sua vida, ou seja, se estende até o final do seu ensino, especialmente até o Livro 23 sobre “O Sinthoma”.

Com efeito, o Seminário 7, “A ética da Psicanálise” apresenta, em sua primeira aula, um novo programa de trabalho sobre o real, centrado na intenção de “alcançar um aprofundamento na noção do real”.

Esse projeto ético não procura o caminho do ideal, para continuar com a clássica procura do bem, em especial na tradição aristotélica. Está inspirado no próprio Freud que, em “A Interpretação dos Sonhos”, diz: “Flectere si nequeo superos, acheronta movebo” — se não posso mobilizar os deuses dos céus, movimentarei os do inferno.

Em 1924, Freud publica “O Problema econômico do masoquismo” e ali modifica a sua teoria de 1915, na qual colocava o sadismo como anterior ao masoquismo, propondo agora o sentido contrário: o masoquismo antecede o sadismo. Desta forma o próprio corpo é o objeto inicial da pulsão.

Lacan se interessa, – sempre no Seminário 7, pelo famoso Marquês de Sade, pela sua vida e a sua obra. Sade, que dá seu nome à perversão “sadismo”, teve uma vida pessoal profundamente masoquista. Podemos colocar em paralelo, como um conflito ético, a máxima de Sade e a máxima kantiana. O comum, em ambas, é que são universalizantes. Kant diz: Atue de tal modo que a máxima da tua vontade possa sempre valer, ao mesmo tempo, como princípio de uma legislação universal. Lacan, por sua vez, em sua leitura da “Filosofia na Alcova”, infere a máxima sadiana da seguinte maneira: “Tenho o direito de gozar do teu corpo, pode me dizer qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar”.[4] Então, a aspiração de aproximar-se do real com a intenção de se aprofundar nele, implica, segundo Lacan, alcançar o núcleo do masoquismo erógeno primário freudiano.

Um parêntese sobre o masoquismo erógeno primário:

O texto de Freud tem uma primeira parte que trata de uma questão crucial: o masoquismo coloca em questão o Princípio de Prazer, que governa a forma como é desenvolvida a estrutura psíquica de tal modo que a finalidade imediata do sistema é se livrar do desprazer e tentar condescender ao prazer. Freud relaciona o desprazer ao aumento da quantidade e o prazer à sua diminuição. Assim, a estrutura do aparelho psíquico está configurada para escoar quantidade, na medida em que seu aumento excessivo é o que provoca o desprazer.

O masoquismo erógeno primário é a base de todo masoquismo. É a satisfação no sofrimento e na dor do corpo. Como se pode gerar uma coisa assim, que foge ao princípio do prazer?

Freud fala da seguinte forma, parecendo a descrição de uma batalha, como se dão – na realidade – entre forças adversas:

A pulsão de morte entra no corpo de modo destrutivo, empurrando o organismo à destruição, e a solução cabe à libido. A libido então se encontra nos seres vivos com o instinto de morte ou de destruição, que se faz presente no instante do nascimento e que, “busca desintegrar este ser e conduzir cada um dos organismos elementares dele ao estado de inorgânica estabilidade”.[5]

A forma que a libido encontra para salvar a vida da pulsão de morte é a de desviar a maior parte possível para fora, para os objetos do mundo exterior –cit.- “com a ajuda de um sistema orgânico particular, a musculatura”.[6]

Outra parte, que não realiza essa mutação para fora, permanece no organismo e, com a ajuda da libido sexual, torna-se ligada libidinalmente ao corpo e nela devemos reconhecer o masoquismo original erógeno. A pulsão de morte não ligada a nenhuma dessas formas passa a fazer parte do Superego, que assim fica, desde a sua constituição, feito de pura pulsão de morte, e por isso precisamente seu imperativo categórico sempre será a ordem: Goza!

Voltemos à pergunta pelo real: Há Um.

Várias são as consequências clínicas que tem partir do Outro do que fazê-lo do Um.

Duas delas, que desejo apenas mencionar, são: a transferência é ao real, e o que orienta a cura não é mais o sentido, mas o sem sentido, produzindo-se assim uma passagem da interpretação à leitura.

 

Real              Leitura                 Simbólico                Interpretação    Imaginário

Sem sentido <————————-+——————- Sentido

<——-  Giro de 180graus -

Mas, há uma dificuldade especial na aceitação das teorias analíticas.

No seminário “A Angústia”, Lacan inicia o capítulo XIX, chamado “O falo evanescente”, tratando da diferença entre o tempo necessário para uma comunidade científica aceitar uma nova teoria e o tempo necessário para a comunidade analítica aceitar mudanças importantes. A teoria da relatividade de Einstein, pouco tempo depois de publicada, contou com a compreensão e a aceitação da comunidade científica. O mesmo aconteceu com as teorias de Newton, etc. Não é assim na Psicanálise.

O giro de Freud de 1920, que introduz a pulsão de morte, levou tempo e nunca foi totalmente aceito por diversos analistas — especialmente pela comunidade norte-americana da IPA ligada à Ego Psychology.

Lacan continua a dizer, no Livro 10 do Seminário, que os analistas precisamos de bem mais tempo, em decorrência da necessidade de elaboração.

A implicação subjetiva do analista na inclusão dos conceitos “depende da angústia de castração”. É por isso que continuamos nossas análises. É por isso que, para estudar psicanálise, temos que ir a um analista.

Quero terminar relatando a vocês o seguinte:

Antes de seu último ensino, Lacan utiliza uma metáfora muito bonita para mostrar a ação do significante sobre o corpo. Nela, uma nuvem carregada de água cai como chuva sobre a terra, produzindo sulcos nos quais a água corre, à procura de uma saída. A nuvem claramente representa o Outro, carregado de significantes que caem sobre o ser, virgem de marcas. Vão se formando assim sendas de circulação que equivalem ao discurso, que vai se tecendo e, dessa forma, “facilitando” a passagem, como diz Freud, ou “fixando”, como diz Lacan, o caminho da descarga, ou seja, o sentido daquilo que irá se formando como discurso. Desse modo, estruturam-se o Sujeito e o Ser, com uma consistência de discurso.

Miller, já na perspectiva do último ensino, usa essa metáfora para dizer, sobre a chuva significante, que sim, sem dúvida, se trata de uma escrita, mas que antes dela se produzir, existe outra. Antes da chuva de significantes do Outro, há outra escrita.

Então, há duas escritas.

Essa primeira, determinante, é uma escrita que se instaura a partir do Um. Não é como uma chuva, é como um vulcão que, de dentro, explode e traça sulcos pelos quais, posteriormente, se encaminharão os significantes que caem das nuvens do Outro[7].

Lacan reserva esse campo, que chamará de campo do Uniano, para a escrita borromeana que vem do Um e, repito, não depende de fora, do Outro-nuvem — surge de dentro do vulcão, como gozo. Esse debate é antigo na psicanálise e, como vimos, parte da teoria do masoquismo erógeno de Freud.

Esse excesso de força do vulcão se trabalha por meio da mutação.

A mutação é fundamentalmente uma passagem de gozo excessivo para desejo, a partir da produção de amor, que é uma das consequências de uma psicanálise.

Este nosso mundo atual é resultado da evaporação da figura patriarcal, mudança na qual participa o discurso do capitalismo que é fundamentalmente um discurso sem amor, e da desaparição do valor do simbólico. Deste mundo da velocidade, do valor da imagem, que tem o gozo no centro e a pulsão escópica é predominante, formam parte nossos pacientes.

A aceleração temporal e o uso da imagem, presentes e em crescimento exponencial, dependem da pulsão escópica de grande poder no ser humano e que se satisfaz do puro ato de olhar.

Assim vivem nossos amigos e colegas, os jovens sofrem assim, e vemos as mudanças, na clínica, na abordagem transferencial, quando há analista, mas não há analizante.

Para terminar quero dizer que o amor é figura central na ação analítica. Lembro a famosa frase de Lacan, do Seminário 10, sobre como é o amor que faz o gozo condescender ao desejo. E também a frase de Freud quando afirma que a psicanálise é uma cura por amor.

E com isto encerro minhas palavras e abro um novo ano, desejando que o mundo se acalme.

Um abraço a cada um de vocês e que possamos ter um bom ano trabalho!


[1] LACAN, Jacques. O Seminário Livro 1: A ordem simbólica. Pág. 264. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] LACAN, Jacques. Escritos: Kant com Sade. Pág. 780. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[5] FREUD, Sigmund. O ego e o id e outros trabalhos: O problema econômico do masoquismo. Pág. 199. Rio de Janeiro, 1976.
[6] Ibid.
[7] O real é sem lei. Opção Lacaniana 34, São Paulo, 2002.
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