Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
(Há)posta
Wilker França – Associado do IPB
O livro “Aposta do Passe” (2018) organizado pela Ana Lydia Santiago carrega em seu título um verbo que já nos dá pistas sobre o passe em uma Escola regida pelo ensino lacaniano. No dicionário Priberam (2022) apostar significa “Fazer aposta de; asseverar; sustentar” e como verbo pronominal indica “empenhar-se”.
Lacan (2003) propõe um dispositivo inédito, chamado passe, que demarca a passagem de analisante a analista. Sua famosa frase “o psicanalista não se autoriza senão de si mesmo” pode ser lida dentro de um percurso feito por pares. O passe, portanto, é um dispositivo de controle, que põe à prova o ponto de finitude do percurso de uma análise, mas não como uma vigilância e sim como uma aposta que reconduz o que sobrou da transferência à transmissão na Escola.
O livro é composto por 11 textos do Jacques-Alain Miller, além dos 15 testemunhos de passe de Analistas da Escola membros da Escola Brasileira de Psicanálise. São eles: Bernardino Horne, Celso Rennó Lima, Lêda Guimarães, Elisa Alvarenga, Ana Lucia Lutterbach Holck, Sergio de Campos, Angelina Harari, Ana Lydia Santiago, Rômulo Ferreira da Silva, Marcus André Vieira, Ram Mandil, Jésus Santiago, Luiz Fernando Carrijo, Maria Josefina Fuentes e Sérgio Laia. Cada um, com seu estilo, testemunha seu percurso trazendo o vivo de sua experiência.
Os textos de JAM escolhidos vão nos dando pistas do lugar, da conceitualização, dos impasses e da importância desse dispositivo ao longo dos anos.
“A favor do passe ou dialética do desejo e fixidez da fantasia” é uma conferência proferida em Caracas em 1980 e indica como o passe era pensado na época, como o atravessamento da fantasia. De certo modo, também, já apontava um mais além. Miller (2018) fala da relação do sujeito com o objeto e a relação disso na fantasia e no desejo.
O objeto não é o que obstaculiza o advento da relação sexual, como um erro de perspectiva pode levar a crer. Ele é, ao contrário, o que obtura a relação não existente e lhe confere a consistência da fantasia. O fim de análise, desde então, no que respeita à pressuposição do advento de uma ausência, resulta na travessia na fantasia e na separação do objeto (p. 16.)
O texto “O avesso do passe” foi proferido em 2007 e é importante para esclarecer a diferença entre o inconsciente transferencial e o inconsciente real. A saída do inconsciente transferencial aponta para o momento oportuno ao passe, ou seja, um dispositivo que se orienta do inconsciente transferencial ao inconsciente real. Assim ele sinaliza:
“(…) a função do esp de um laps, função em que o lapso, formação do inconsciente, já não tem qualquer possibilidade de sentido ou interpretação. Pode-se falar então de saída do inconsciente transferencial” (p.74).
O autor indica que Freud já demarcava que toda análise tem um fim, contudo, o final de análise remetia ao sujeito seguir se analisando, prescindindo do analista, em sua solidão. Já Lacan propôs uma outra via, “que consiste em estabelecer uma relação entre o inconsciente real e a causa analítica” (MILLER, 2018. p. 76). E sinaliza que o passe bis vai do inconsciente real ao inconsciente transferencial. “Trata-se de uma nova transferência” (MILLER, 2018. p.76). O passe bis, portanto, seria uma operação de histoerização, uma história histerizada. Miller (2018) designa:
O testemunho que se espera do passe bis é o modo como alguém soube lidar, em sua análise, com a miragem da verdade, como se entregou a ela, se deixou enganar por ela e como, em seguida, se safou dela, como – assim o esperamos – se redimiu a ela (p. 77).
Dessa forma, o autor orienta sobre a operação que ocorre com os testemunhos e a importância do passe na relação com a causa analítica.
Já o texto “É passe?” se refere a transcrição de uma intervenção realizada na Jornada da Causa Freudiana em 2011 em que Miller (2018) elabora o passe como uma performance e não como uma competência, por isso mesmo, o analista não julga o passe na prática. No subtítulo “Para além de alcançar o estrelato” o autor sinaliza alguns impasses próprios do dispositivo na Escola e o diferencia de um instrumento de vigilância, fazendo ecoar mais ainda seu valor de aposta. “O que funciona como único aparelho de controle potencial é o passe, não como um direito à vigilância, e sim como a garantia de que, em todo caso, há um além da análise de cada um” (p. 123). Contudo, mesmo com os (im)passes, o autor marca que apesar da nossa própria desorientação é necessário que ele continue em um lugar de extrema importância, como foi dado por Lacan. Assim o dispositivo segue fazendo da Escola criada por Lacan uma caixa de ecos.
Um dos maiores ensinamentos que tiro dessa experiência de leitura é a possibilidade de pensar o passe não como um lugar a se chegar, pois assim correria o risco de uma idealização, mas como uma aposta em um percurso. Percurso que passa pelo atravessamento da fantasia, a separação do objeto e uma invenção com os restos sintomáticos, mas diria que se trata, principalmente, sobre o que há de singular daquela experiência. E é assim que a psicanálise pode avançar enquanto uma teoria viva que advém da clínica.