Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
“Não ceder ao primeiro convite”: da tendência homossexual em Schreber[1]
Nelson Matheus Silva
Não é raro encontrarmos em Lacan um esforço de conduzir algum pressuposto freudiano mais além daquilo que permitiu ao próprio Freud assimilar no que tange a uma certa questão como parte de um dado mecanismo que se lhe era apresentado. Em outras palavras, já naquilo que Lacan mesmo chama de “primeiro ensino” (1964/1988, p. 24) nos é possível extrair o movimento presente dele de se servir da estrada principal erigida e sedimentada por Freud, para, num trabalho constante, poder ir além dela. Para o encontro de hoje, escolhi trabalhar um tema que perpassa toda a discussão do caso do presidente Schreber, por ser ela a primeira postulação hipotética oferecida pela psicanálise a respeito do qual se daria o mecanismo da paranoia, a saber, uma defesa contra uma tendência homossexual.
Na aula em que Lacan destaca o enunciado proferido por Schreber, “não ceder ao primeiro convite” (LACAN, 1955-56/1988, p.318), a um só tempo ele tanto nos adverte que na ideia da tendência homossexual pode ter “outra coisa” como também põe em evidência a função do tu em sua relação com o eu, e esse ponto é essencial. Para tanto, cito Lacan, “quanto a saber o que é que é essa homossexualidade, em que ponto da economia do sujeito ela intervém, como ela determina a psicose – creio poder testemunhar que só há de esboçado, neste sentido, encaminhamentos os mais imprecisos, e mesmo os mais opostos” (LACAN, 1955-56/1988, p.41).
Para Freud (1911/2010), o que importava para entender as psicoses não era o sintoma, como nos casos de neurose, mas o mecanismo sobre o qual ela se funda. Na época em que ele destrincha o caso do presidente Schreber – vale ressaltar que Freud se dedicou à investigação de variadas histórias clínicas para concluir sua hipótese -, e apoiado sobre sua teoria do autoerotismo, que diz do percurso da economia libidinal, cujo caminho segue desse primeiro tempo lógico – o autoerotismo – para o amor objetal, Freud vai afirmar que o delírio do sujeito paranoico remete à esta etapa primeira do desenvolvimento libidinal. Em 1911, ele dirá que essa passagem se dá pela saída de uma suposta homossexualidade, marcada por um estádio onde o indivíduo toma a si mesmo, o seu próprio corpo, como objeto de amor, em direção a uma heterossexualidade, onde uma outra pessoa, com genitais distintos, é tomada como objeto de amor. Freud supõe, a grosso modo, que no caso Schreber, a moção pulsional homossexual, então recalcada, retorna de um ponto inassimilável, provocando o desencadeamento do delírio do doente.
O registro imaginário
O que parece notável nessa hipótese, não é a correlação direta que Freud tenta estabelecer entre o fator sexual, da suposição de uma escolha objetal e o retorno daquilo que teria sido recalcado, com a perda da realidade na psicose, mas o ponto para onde o sujeito regride ao ter sua realidade dissolvida. Não passa despercebido para Freud (1914/2010), que para alguns sujeitos essa fase intermediária, chamada de narcisismo, entre o autoerotismo e a escolha de amor objetal, pode fixar uma grande quantidade de libido.
O narcisismo, que corresponde a esse momento de organização da energia libidinal, tem como correlato, se for possível assim dizê-lo, o primeiro tempo do complexo de Édipo. Lacan (1949/1998) formalizou esse tempo da constituição subjetiva a partir de seu esquema do estádio do espelho, como referente à ação psíquica necessária que marcaria a entrada no narcisismo, etapa onde se desenrola a formação do eu [je] dada pela assunção jubilatória da imagem de si mesmo e sua posterior simbolização – uma passagem que se dá da fragmentação das pulsões parciais no corpo tido como despedaçado à unidade do corpo próprio.
O estádio do espelho, para esclarecer de forma breve esse ponto, pode ser dividido em três tempos lógicos. Num primeiro tempo, o sujeito enxerga uma imagem, mas não se vê nela; o segundo tempo é marcado por um transitivismo, ou seja, há uma indeterminação de quem vê e está sendo visto na dimensão especular. É nesse tempo que podemos localizar tanto a relação de reciprocidade que o eu estabelece com o tu – o outro especular – ao mesmo tempo que se presentifica uma desorientação sobre quem é o eu e quem é o tu. Se tomarmos como exemplo o próprio desenvolvimento de Freud (1911/2010) a respeito de sua hipótese do caso Schreber, podemos dizer que onde há a evocação do pensamento “eu não o amo”, o “tu me me odeias” advém no lugar. Isso, então, dá corpo ao problema que objetivo desenvolver aqui. No terceiro tempo da relação com a imagem, ocorre a entrada do simbólico por meio de um Outro, externo à cena, que surge e aponta o eu daquele se vê, e reconhece a imagem refletida no espelho, “sim, é você”.
É através do Outro que nos fazemos reconhecer, por meio do qual antes ele já havia sido reconhecido. O estádio do espelho, com isso, institui não só a formação do eu, mas o lugar do Outro como alteridade. Se na psicose Outro é absoluto e advém como perseguidor e gozador, é porque se trata de um outro capturado dentro da dimensão indissociável do próprio eu, no registro imaginário. “Jamais houve tu em outro lugar do que ali onde se diz tu” (LACAN, 1955-56/1988, p.318). O mecanismo da alucinação verbal, como nos ensina Lacan, é majoritário em nos demonstrar que aquilo que o sujeito diz ouvir é a boca dele mesmo que balbucia, tomada como sendo um outro externo à cena. O Outro simbólico é por estrutura uma dialética superposta no plano do imaginário. É somente quando a imagem especular se unifica, onde antes havia um corpo tido como despedaçado, que podemos falar de relação simbólica Mãe-Criança. Tal dialetização não há na psicose.
No caso Schreber, constatamos que há uma fixação da libidido nesse registro do imaginário, como também se evidencia uma diluição de sua imagem narcísica, ao que Lacan chamou de regressão tópica ao estádio do espelho, o que nos é demonstrado quando de sua representação como um “cadáver leproso conduzindo um outro cadáver leproso”. É interessante notar aqui a presença desse duplo especular já presente na entrada da psicose de Schreber.
Enquanto a realidade montada por Schreber se dissolvia em cascata, uma dimensão mais real de sua constituição se apresentava. Como esclarece Daniel Cena Reído (2017/2019), “en el caso Schreber la caída de la imagen especular, su dilución, da como resultado la aparición de los cadáveres leprosos que desnudan al objeto (a) como desecho (lixo) o carroña (carniça) universal. Revelado el lugar de objeto (a) que ocupa el sujeto psicótico como desecho”.
As soluções delirantes encontradas por Schreber são recursos que ele utiliza para tentar sair desse lugar de dejeto na relação que se estabelece com o Outro. Do “assasinato de almas”, que não lhe resultou nenhum tipo de apaziguamento, o percurso para restabelecer a realidade conduziu o delirante a uma sua solução hiperbólica, não de ser um homem castrado, onde se situaria numa posição feminina, mas de se feminizar (Verweiblichung) até se transformar na mulher de Deus, o que culminará em dar existência ali onde a não-existência tem o seu lugar.
Sobre a transferência na paranoia
Nesse ideal delirante, Flechsig assumiu uma posição determinante diante de Schreber, seu paciente. O fato do médico interessar-se pelo que ocorria com seu corpo, para pesquisas científicas, gerava intensa angústia em Schreber, o que nos revela a lógica por onde se deu a transferência nesse caso. Freud (1911/2010) já havia destacado que diante de Flechsig, o paciente aderiu a uma suposta posição feminina, o que estaria vinculado à tendência homossexual recalcada. Porém, como podemos verificar é na condição de objeto a, como dejeto, como objeto gozado, que Schreber se localiza diante de seu médico. O problema com a alteridade invade a transferência e a consolida.
Flechsig é aspirado para o delírio de Schreber assumindo versões variadas e conflitivas dessa miragem narcísica fragmentada a qual o nosso doente regride. “E vemos assim, em toda extensão dessa história, um Flechsig fragmentado, um Flechsig superior, o Flechsig luminoso, e uma parte inferior que chega até a ser fragmentada entre quarenta e sessenta pequenas almas” (LACAN, 1955-56/1988, p. 119).
Nesse lugar onde se deu a transferência de Schreber para com seu médico, há algo que Lacan nos ensina. Numa recaída de Schreber, Flechsig, mesmo sabendo do histórico de seu paciente e das tentativas frustradas de engravidar sua esposa, que tivera abortos espontâneos, “diz a ele que, desde a última vez, fizeram-se enormes progressos em psiquiatria, e que se vai botá-lo num desses soninhos que vai ser bem fecundo” (LACAN, 1955-56/1988, p. 356). Lacan alerta que talvez justo isso jamais deveria ter sido dito. Nessa mesma noite Schreber tenta se enforcar.
Benetti (2017), tomando como referência uma articulação entre o primeiro e o último ensino de Lacan, esclarece que a transferência na psicose paranóica deve trabalhar “contra” a metáfora delirante. Isso porque, diante da irrupção de um “Um-pai como sem razão” se produz “o efeito de sentido como de forçamento para o campo de um Outro a ser pensado como o mais estranho a qualquer sentido” (LACAN, 1972/2003, p. 466). Nesse campo, como sabemos, o sujeito psicótico, desnudado em sua posição, tende a incluir no delírio aquele ou aquela que para ele se apresenta como esse Outro sem mediação simbólica, um Outro gozador, que é facilmente capturado pela dimensão imaginária sob a qual o psicótico está fixado.
A fragmentação de Flechsig no delírio de Schreber, também nos ensina algo sobre a transferência no que verte sobre a retificação. Se na neurose, a retificação recai sobre o sujeito, na psicose é o Outro que precisa ser retificado. Recordo-me de I, uma paciente psicótica, com forte presença de traços paranoicos, que ao chegar em meu consultório costumava pedir para ser anunciada na portaria. A ausência de um secretário que pudesse responder ao chamado do empresarial, fez como combinado que a portaria só entraria em contato em caso de emergência. A insistência da paciente, que queria certificar-se de que o analista estaria disponível para ela naquele horário (vale salientar que ela sempre chegava muito tempo antes do horário de sua sessão), fazia com a porteira do empresarial, constrangida diante do apela frenético da paciente, entrasse em contato diversas vezes.
Numa ocasião, e devido à repetição sucessiva da chamada ao interfone, o analista reitera o acordo feito com a administração do prédio. A porteira, provavelmente nervosa diante da situação, repassa o desconforto do analista à paciente que aguarda uma confirmação. O enunciado da paciente diz dos efeitos apaziguadores que se sucederam após esse evento: “descobri que você é gente também, e fica irritado”. Na manobra transferencial, o analista consente com a interpretação da paciente que falou isso estampando um sorriso como não lhe era de costume.
Para concluir
Nesse sentido, “se Freud depositou tanta ênfase na questão homossexual, foi, primeiro, para demonstrar que ela condiciona a ideia de grandeza no delírio, porém, mais essencialmente, ele denuncia ali o modo de alteridade segundo a qual se efetua a metamorfose do sujeito, ou, em outras palavras, o lugar onde se sucedem suas “transferências” delirantes” (LACAN, 1957-58/1998, p. 551). Em nenhum momento, como podemos acompanhar ao longo da obra freudiana e nos debates que Lacan levanta ao longo de seu Seminário 3, servindo-se dos pontos levantados pela sra. Ida Malcapine, se trata, em Schreber, de uma homossexualidade como escolha de amor objetal.
No que tange à escolha de objeto e à posição sexual é impossível apontá-las sem levarmos em conta o estádio do espelho e a referência à castração. “A realização da posição sexual no ser humano está ligada, nos diz Freud – e nos diz a experiência – à prova da travessia de uma relação fundamentalmente simbolizada, a do Édipo” (LACAN, 1955-56/1988, p. 208).
Se Freud (1914/2010) insiste que há na escolha de objeto homossexual a predomância do tipo narcísico, seja em sua regressão ou fixação, disso não se extrai nenhum privilégio. O tema da homossexualidade, como é posto no narcismo, só vem a ser esclarecido por Lacan em seu escrito “O aturdito”, em 1972, afirmando ter sido ele o único a ter tentado desfazer tal equívoco. Ao descrever o que seria o próprio estatuto do homem – eu diria, do lado homem -, Lacan o localiza como sendo o do homossexual. “Isto é, com o que até aqui era chamado de homem resumido, que é o protótipo do semelhante” (LACAN, 1972/2003, p. 468). Assim, ainda com Lacan (1972/2003), sabemos que o estatuto do héteros pertence, não à escolha de amor objetal nem às imagens dos caracteres secundários que cada um carrega no corpo, mas à dimensão do gozo.
Se a dissolução imaginária em Schreber revela-nos uma fragilidade, e até um não atravessamento, no que concerne ao estádio do espelho, como falar em escolha escolha de objeto na psicose?