Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
O gênero não-binário e o outro
Giovana Reis Mesquita
Associada do Instituto de Psicanálise da Bahia
As questões atuais sobre gênero e, mais especificamente, sobre o “trans” interrogam, segundo Vieira[1], a prática e teoria da Psicanálise bem como o momento da civilização. E é por essa via que queremos abordar o tema: que momento é esse que produz tal relação com o corpo, com o outro e com o gênero.
Ao falar em população trans, nos referimos ao que Maleval[2] define como pessoas que se opõem à concepção binária do sexo e trabalham para ter e operar uma imagem condizente com essa concepção. Os chamados não-binários estariam, acrescenta Maleval[3], movidos por um desejo diferente daquele da transexualização. E do que pode se tratar esse desejo é o que procuraremos explorar aqui.
Não parece que o fenômeno não-binário seja exclusivo de nossa época. Há relatos, por exemplo, de povos na Polinésia e na América Latina na Antiguidade que tinham xamãs que não se identificavam com o sexo masculino e nem feminino; deuses cultuados também[4]. Mas nos interessa o não-binarismo na subjetividade atual, relacionado ao regime capitalista atual e à queda do falocentrismo.
Parece que o que movimenta a sociedade é sempre o embate que se dá entre o Outro e o gozo do um, como postulou Freud[5] no “Mal-estar na civilização”. No caso do sujeito contemporâneo, está marcado, como destaca Barros[6], por uma ausência de referência ao outro simbólico implicando no surgimento de identificações imaginárias mutáveis e em um empuxo ao gozo. Não se está mais orientado pelos ideais, mas sim, pelo supereu. O mundo sem lei, de falo esmaecido; é o discurso capitalista com seu poder acéfalo, distribuído, horizontalizado, onde tudo é possível, sem exceção.
Onde existia uma diferença organizadora de leis de aliança e de parentesco, institui-se a equivalência[7]. A lógica da inexistência da exceção traz a diversidade sexual não normatizada de forma binária[8]. O mandato é da não diferenciação, da não virilidade, do não-outro.
Podemos pensar que o não-binarismo, como resultado dessa época, é como uma recusa à perda de gozo. Não se quer perder nada; se é completo. O termo sugere o apagamento de qualquer diferença, e, com isso, apaga-se o outro também. Quanto mais gozo, menos Outro, no xadrez da civilização.
O discurso atual de gênero não passa pela castração, é sem limite. E como sexo é um dos nomes da castração[9], parece ter sido excluído dele. Há uma negação da alteridade sexual, inclusive no próprio corpo. Negação do êxtimo em si, daquilo que pode causar horror[10].
Mas o significante não conhece outra lei que não seja de organizar diferenças[11]. O sexo é um significante que nomeia uma divisão e vai irromper sempre para perturbar a ordem dos gêneros.
Essa divisão leva o sujeito a adoção de uma identidade sexual que implica a referência ao Outro sexo e, ao mesmo tempo, ao sexo do outro[12]. Se a identidade é um conjunto, precisa haver o que não pertence ao conjunto, o outro, que dá consistência a ele. Não parece ser possível abrir mão de todo e qualquer binarismo quando se fala em sexual; quando se fala.
No nível do inconsciente, não há um outro sexo; opera a fórmula da sexuação. Lacan demonstra que o significante que está em jogo é o do gozo e que o sexual não pode ser resolvido em termos de identificações[13]. A pulsão sexual não é binária.
Entretanto, falar de gênero não-binário não aponta para o gozo do um. O não-binário pode ser lido como uma expulsão da relação com o outro no próprio corpo. Como resultado disso, os sujeitos têm dificuldade de encarar sua própria castração. O amor fica em xeque, há dificuldade de se enlaçar ao outro e de ir em direção ao desejo. A libido pode ficar restrita ao próprio corpo, levando o sujeito a uma vivência mais infantil da sua sexualidade, atrelada a um narcisismo inicial.
O discurso trans não deixa de ser uma resposta a mais ao mal-estar geral em relação à sexualidade[14]. Mesmo podendo estar sujeito a um efeito de massa, tem uma importância política e cultural no sentido de questionar outros padrões identitários opressores. Pode funcionar como uma possibilidade de mais liberdade e autenticidade para o sujeito.
Mas quando o discurso trans está a serviço do discurso capitalista, a uma negação do Outro, aí não parece capaz de trazer maior equilíbrio subjetivo. Uma não conformidade ao gênero, ao corpo, é algo, em alguma medida, atravessado por todos. Mas resolver isso a partir de uma nomeação talvez não seja a melhor forma de enfrentar a questão, ou melhor, talvez seja uma resolução pela metade.
É como se o gênero não-binário tentasse resolver o confronto com o sexo, sem deixar furo, como se pudéssemos negar a existência de uma falta estrutural. Fica-se com uma resposta pela via imaginária, por uma cadeia metonímica sem fim, colada ao objeto a, ao desejo materno, sem apresentar, ao que parece, um apaziguamento em relação ao corpo e ao gozo.
No campo da psicose, a falta do Nome-do-Pai para regular o gozo produz o incessante deslocamento metonímico que tem como um de seus resultados o empuxo à mulher. No fenômeno do gênero não-binário, por semelhança à solução metonímica, vemos o empuxo ao gozo, que nesse caso se manifesta na negação ao Outro do sexo, à negação da falta.
Uma solução metafórica, por sua vez, poderia permitir ao sujeito a possibilidade de se sustentar na sua própria exceção em relação à regra geral, de saber fazer aí, encarando a castração e a inconsistência dos ideais.
As novas definições de gênero multiplicam as possibilidades para o eu, a sua performance, mas o encontro com o corpo, com sexo, com o amor, continua sendo um desafio, que não parece possível sem o outro. A assimetria sempre está em jogo. O sexo é sempre um outro.