Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
Racismo: Uma história brasileira
Renata Mendonça
Psicanalista, responsável pelo Ateliê Psicanálise e Segregação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de MG, pesquisadora do Coletivo Ocupação Psicanalítica do PSILACS-UFMG.
“ Assim, o inconsciente tem a ver com se produz a partir ‘do laço social’. Sendo o inconsciente aquilo com que um analista tem sempre a ver, o analista e a psicanálise têm a ver com o laço social, aquilo que faz o laço com o Outro e com os outros, aquilo que o coloca frente a frente com a cidade e com a subjetividade de sua época”. (Guardado. p. 21)
O Brasil nasce, quando essa terra foi invadida, com a escravização dos povos, dos povos originários, os indígenas, e a posteriori com a vinda do povo negro, do continente africano em navios negreiros. Assim, nosso país nasce marcado pela segregação, pelo racismo.
Assistimos, historicamente, toda uma construção que passa pela violência racial e a degradação dos povos indígenas e negros. Uma violência que persiste até a atualidade. Teria alguma consequência nascer mergulhado neste discurso?
Podemos afirmar que a raça “não existe enquanto fato natural físico, antropológico ou genético. A raça não passa de uma ficção útil, uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica, cuja função é desviar a atenção de conflitos considerados, sob outro ponto de vista, como mais genuínos”. (MBEMBE 2013/2018 p. 28). Dizendo-nos que essa invenção tem uma função, inclusive capitalista, pois, mercantiliza os corpos e, Santigo também reafirma: “as raças constituem um mito criado por diversas manifestações de discursos dominantes”.(SANTIAGO 2021) Assim, o racismo liga o preconceito ao poder, uma dominação dos corpos, objetalizando-os, fazendo de pessoas “criados mudos[1]”
Os negros e indígenas desde a escravização de seus corpos e da tentativa constante do colonizador de apagar as suas histórias, lutam para viverem uma vida mais digna, pois, a partir da parceria entre Estado, Religião e Ciência foram considerados inferiores, incivilizados, sem alma e por isso tiveram seus corpos vendidos e mortos, pois, esse corpo não era um corpo humano.
Vemos, durantes este período, até a atualidade, novas construções sobre as questões raciais, mas, o racismo chamado estrutural por Silvio Almeida e o que ele significa ainda permanece presente no país. O que a psicanálise pode contribuir em relação a essa questão?
Há dois anos o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais incluiu o Ateliê de Pesquisa em Psicanálise e Segregação[2] em sua agenda. Esse Ateliê nasce de um Cartel, mas, também se mantém a partir de uma pergunta: o que a psicanálise pode dizer sobre isso?
Essa pesquisa faz com que nos debrucemos sobre as questões da raça e as consequências do racismo estrutural sobre os sujeitos negros e brancos. Possibilita a leitura e releitura de alguns escritores esquecidos como Franstz Fanon, Lélia Gonzales e Neusa Santos Souza.
Esse trabalho é fundamental, pois, podemos afirmar que o inconsciente não ficou ileso, protegido do racismo estrutural vivido desde sempre em nosso país. Um racismo a brasileira, pois, é um racismo que não foi institucionalizado como em outros países, assim, esse racismo não oficializado só perpetua e garante “a manutenção da lógica de construção social, na qual a negação do racismo estrutural produz dispositivos cada vez mais sofisticados de opressão, violência e extermínio” (Ribeiro, 2022 p. 19), exacerbados nos dias de hoje em que vemos um crescimento constante do fascismo e da extrema direita em nosso país e no mundo.
É necessário lermos como cada civilização se constituiu para também, assim, ler o inconsciente daqueles que vivem e nasceram nesta civilização e, no caso do Brasil, essa construção social é feita com o racismo. Podemos afirmar que, como nos ensina Laurent, que há “uma comunidade de interesses entre o discurso psicanalítico e a democracia” (LAURENT 1999/2011 p.08) e que o psicanalista não deve ficar a serviço da desindentificação, ser “especialista da desindentificação”, mas, que deve incluir os laços e a cidade, ser um analista cidadão, já que, a psicanalise trata das diversas formas de segregação.
A psicanálise trabalha contra os modos totalitários, fascistas e trata, lê as diversas segregações, ela se interessa por aquilo que pode ser extraído no um a um e, sabe que o gozo é singular. Para o colonizador o gozo precisa ser igual para todos. Com isso, a raça branca traz para os povos colonizados o seu modo de gozar e, em parceria com o Estado, a Religião e a Ciência definem o melhor modo de gozo, o civilizado, o desenvolvido e mais próximo de um Deus único. Em que o outro gozo é tratado como estrangeiro ou incivilizado. A psicanálise se interessa pela diversidade!
Para a psicanálise há na lógica colonizadora uma tentativa de fazer existir o gozo único, igual para todos, pois, “só sabemos rejeitar o gozo do Outro” Laurent (2014). Não é desenvolvimento é a normatização dos corpos. No texto “Racismo 2.0” Laurent (2014) apresenta a perspectiva de Lacan, ele diz:
“(…) Lacan denuncia o duplo movimento do colonialismo e da vontade de normalizar o gozo daquele que é deslocado, emigrado em nome de um dito «bem dele». «Deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo, eis o que só seria possível não lhe impondo o nosso, não o tomando por subdesenvolvido” (Laurent, 2014).
A sociedade brasileira tem seu modo de vida, seus laços sociais e seu modo de existir sustentado pelo racismo estrutural, as implicações do racismo naturalizam os modos como os corpos vivem, naturalizam a segregação e a violência sobre os corpos negros e indígenas e, as estratégias criadas para que o racismo estrutural se mantenha são extremamente complexas.
Para Miller a ciência está implicada com o racismo na atualidade, não é mais uma implicação da época da colonização, em parceria com a religião, que lê os escravizados como sem alma, selvagens, agressivos, mais próximos dos animais, hoje, para Miller, as implicações, da ciência, são outras “a ciência enquanto universal que visa obter uma uniformização, e especialmente uma uniformização do gozo” (Miller 2016). Quando o Outro goza de outra maneira é um escândalo, isso que é insuportável, ela, a ciência, chama para o irracional. Para ele é um racismo moderno, que é da época da ciência e da psicanálise. Uma ciência que universaliza os sujeitos.
Para Lacan o homem precipita-se em se nomear homem com medo de não ser homem, Miller também afirma que é necessário se chamar de desenvolvido com medo de ser subdesenvolvido, podemos afirmar que há, então, a partir da “ficção útil da raça”, uma definição, mais complexa ou com novas estratégias, de quem é humano e de quem não é humano, quem pode morrer, ter os corpos escravizados, ou quem é belo, desenvolvido e quem não o é.
Essa definição se deu a partir da ideia que o Branco não é uma cor, não é uma raça, mas, ele é invisibilidade, pois, ele é o humano. O Ideal de Eu, o humano, é branco. Assim vemos um país, após a chamada abolição, com seu Estado e Ciência incluírem privilégios para a emigração da raça branca, para que com a miscigenação construísse um país mais civilizado, com a branquitude e a mistura das raças, inventando a mentira da democracia racial brasileira.
Com todos esses detalhes e outros que não colocamos aqui podemos afirmar que a psicanálise deve e pode incluir as questões raciais como uma pergunta sobre os corpos, a clínica e o inconsciente, para estar à altura da subjetividade de sua época e para se manter ética diante da questão que nos provoca sempre: o Inconsciente é a política.