Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
SERÁ SEMPRE A MESMA CICATRIZ[1]
Daniela Lima de Almeida
Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB). Pós-graduanda em Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana (TPOL). Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia (PPGPSI-UFBA)
Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa –
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.
E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.
(Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética)
O gesto freudiano que inaugura a psicanálise introduz uma questão sobre a natureza psíquica das formações oníricas. Ao extrair o sonho do campo científico – que o considerava como um processo fisiológico – e do senso comum – que encontrava nos oráculos o seu sentido –, Freud (1900/2019) chama atenção para a cena inconsciente, que, com seu próprio modo de funcionamento, faz do sonho um guardião do sono e uma realização de desejo sexual infantil e recalcado. Um corte epistemológico com a neurologia é fundado, do qual deriva uma perspectiva inédita a respeito dos sonhos: a inclusão do sonhador como intérprete da própria formação onírica, o que a retira de todo destino oracular ou da pura atividade cerebral.
O título escolhido por Freud, Die Traumdeutung, A interpretação do sonho, já nos introduz um equívoco, marca da psicanálise até os dias de hoje: ao mesmo tempo em que remete a interpretar o sonho, nos diz também do sonho como intérprete (ASSEF, 2020). Na formação onírica, algo é cifrado e decifrado, embora um ponto resista à interpretação: o umbigo do sonho, tal como Freud (1900/2019) nomeia ao falar de “um novelo de pensamentos oníricos que não é possível desembaraçar, mas que também não contribuiu muito para o conteúdo do sonho. Esse, então, é o ‘umbigo’ do sonho, o ponto em que ele assenta no desconhecido” (p. 530). Uma questão já se delineia, portanto: além do umbigo do sonho apontar para algo que não passa pela decifração, podemos dizer que testemunha também um limite no processo de cifração do inconsciente intérprete?
Esse emaranhado de pensamentos oníricos que Freud (1900/2019) localiza como o umbigo do sonho está intimamente articulado ao desejo: “o desejo do sonho surge então de um ponto mais denso desse tecido, como o cogumelo de seu micélio” (p. 530-1). Assim, a elaboração freudiana já indica que há um ponto em que o desejo escapa à representação. O que resta, então, é um movimento de busca, um impulso psíquico que impele o sujeito a retornar à primeira vivência de satisfação. Neste percurso, embora algo seja realizado, há também a repercussão de uma falta, uma vez que é impossível atingir novamente esta primeira experiência. Para Freud (1900/2019), “nada além de um desejo pode impelir nosso aparelho psíquico a trabalhar” (p. 568).
A epígrafe deste trabalho dá um tom ao aproximar o sonho de uma ausência. Para efeitos deste escrito, podemos modalizar a ausência para uma falta ou para um traço que engendra um contorno de um vazio. O poema de Sophia de Mello começa por anunciar a impossibilidade de trilhar caminhos naturais. Neste verso, ela nos antecipa, pois do que se trata a entrada do sujeito na linguagem, senão de uma inauguração de uma divisão subjetiva, via para o desejo? Eis em Lacan (1954-1955/1985), com Freud, uma poética da divisão, esboçada a partir da elaboração onírica: “[…] eu, o criador, não sou o criador. O criador é alguém maior do que eu. É o meu inconsciente, é esta fala que fala em mim, para além de mim” (p. 217).
No Seminário 2, Lacan (1954-1955/1985) retoma a questão do desejo e utiliza o significante rasgado para qualificá-lo: “o desejo tem um caráter radicalmente rasgado” (p. 211). Salta aos olhos que uma derivação deste significante aparece conectado à angústia, ao instante em que, no sonho, o imaginário se decompõe e em que emerge o real em sua face impenetrável, distante das palavras, sem mediação, em que “o sujeito se depara com a experiência de seu rasgamento, de seu isolamento com relação ao mundo” (LACAN, 1954-1955/1985, p. 212).
Entre a angústia e o desejo, um rasgo. Mas entre um rasgo e outro, de que se trata? Fenda, rachadura, hiância. De todo modo, cicatriz do inconsciente, como mais tarde Lacan (1964/2008) elaborara no Seminário 11. Se desse rasgo não se cura, que essa cicatriz-umbigo possa repercutir, no sonho, no lapso, no ato falho, no chiste ou no sintoma, no que agita o corpo e o vivifica. Do poema que prenuncia que “será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência”, essa cicatriz como marca é decantada, é ela que se encontra como ponto invariável, para além das representações que deslizam. Entre a ausência e a falta, entre o rasgo da angústia e do desejo, uma questão de tom.