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Lapsus Entrevista 2023

Olá, Bernardino! Primeiramente, gostaria de agradecer a disponibilidade em participar desta entrevista para a Lapsus – esta revista do Instituto de Psicanálise da Bahia que há pouco mais de doze anos estava sendo pensada e idealizada por você. É uma honra tê-lo nesta edição da Lapsus.

1) Gostaria de saber um pouco mais sobre esse início da Lapsus, o que você pretendia quando a lançou. Ao mesmo tempo, gostaria que você falasse um pouco sobre o lugar da escrita para você e como poderíamos pensar o lugar do ato de escrever e publicar na formação do analista.

2) A Lapsus é uma revista do Instituto de Psicanálise da Bahia, por sua vez ligado à Escola Brasileira de Psicanálise. Instituto e Escola se distinguem, mas funcionam como aguilhão um do outro em muitas ocasiões. Minha questão é sobre a transferência. Como você pensa a articulação da transferência entre Instituto e Escola?

3) O tema da Jornada do IPB deste ano, que ocorrerá juntamente com a Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise, seção Bahia, será “Desejo, mostra a tua cara”. Sei que há um bom tempo você vem estudando o ultimíssimo Lacan. Como seria pensar o desejo a partir do último ensino de Lacan?

Para mim, é um prazer responder às suas questões. Lapsus é uma velha amiga.

Como sua questão orienta querendo minha perspectiva como fundador de Lapsus, vou responder desde mim, sem tentar uma história objetiva dos fatos.

A fundação da Escola teve dois momentos em dois anos: o primeiro ano foi o da fundação da Escola Múltipla. Miller foi, Seção por Seção, fundando as seções da Escola.

A fundação do IPB aconteceu no mesmo tempo da fundação da seção Bahia. Nesse momento, eu era o presidente da Escola Múltipla. Miller, em nome do Instituto de Paris – ao qual ficamos ligados e comprometidos na qualidade de nosso trabalho –, escreveu o Estatuto e fundou o IPB.

O IPB seria um lugar de estudo onde os associados formariam parte ativa das bases para sua formação. Um ponto de partida, porque a formação do analista se efetua na Escola. Uma das perguntas que trabalha a Escola, tomando em consideração os depoimentos dos Analistas da Escola (AE), é o que é um analista, já que, como na mulher, não há um significante que o defina.

Na primeira época, a meta foi a criação de um espírito de Escola Uma; o problema era conseguir que os líderes dos grupos permitissem a passagem, do funcionamento em grupos, ao funcionamento de um por um, formando um conjunto Escola.

A Escola é um conceito longamente trabalhado por Lacan; é a rigor, para nós, um objeto constituído como uma rede de saber e isso causa nosso desejo. Lacan trabalha, na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, como o saber como agalma é algo que Sócrates tem. A Escola é como Sócrates: contém um objeto, o saber, que é causa do desejo de Escola. Há que sustentar vivo o agalma.

A participação ativa no processo de fundação da Escola brasileira, que me levou a ser o seu primeiro presidente, e a participação pelo Brasil de vários lugares de trabalho, principalmente no campo da Escola Uma, me deixavam um pouco longe das atividades internas da Seção. Em determinado momento, quando a segunda geração tomou conta da Escola, decidi investir mais na Bahia, também com a ideia de ser grato pela sua generosidade comigo. A atividade fundamental foi a de montar o Instituto, nosso IPB-BA, na dimensão e compromisso com a Orientação Lacaniana do Campo Freudiano, tarefa que se realizou com a participação entusiasmada de todos os membros da Escola.

Dessa forma, como sempre defendi a ideia de que os ME tinham que ter espaços próprios, também impulsei atividades nas quais os associados do Instituto foram os atores e responsáveis de suas atividades, assim como ter espaços entre eles para debater e estudar, sendo o cartel o lugar privilegiado. No curso de pós-graduação, introduzimos o trabalho em cartel como forma de estimular o trabalho escrito. Era difícil entender que cada um tinha que fazer sua produção escrita individual e que apenas a elaboração era grupal. Era necessário um paper por cada aula.

Aqui entra a Lapsus. Vimos então que uma dificuldade dos associados era a de escrever e que nos cursos, nos períodos que era necessário apresentar textos, sempre apareciam crises.

Lapsus seria a revista deles, para escrever.

Nasceu com algumas premissas: não é um boletim informativo, ainda que possa veicular alguma informação. Não é para convidar estrelas a fazer textos, ainda que às vezes possa ser conveniente. É fundamentalmente para que os associados escrevam textos sobre o que estão estudando e pensando, principalmente apontando à psicanálise pura e às entrevistas, que implicam um entrevistador associado. Lapsus foi fundada para que os associados aprendam a escrever, dirigir publicações, organizar debates, no contexto do discurso analítico. Assim, diretor e comissão de redação eram formados por associados. Eu apenas assumi a função de assessor, o que também era uma exigência do Instituto de Paris, na medida em que assim era o último responsável do produto do IPB. O nome Lapsus foi escolhido entre todos: cada um deu um nome e fomos peneirando até chegarmos a Lapsus. Acredito que tenha sido Rogério, bem jovem na época, que tenha sugerido esse nome.

O que distingue nossa Escola e a AMP de outros grupos é a orientação clínica ao real e ao passe.

Entre os seminários 1 a 6 transcorre o tempo do simbólico e do imaginário.

No Seminário 7, a orientação lacaniana girará em direção ao real. Nesse Seminário, Lacan, pela primeira vez, abre explicitamente um projeto novo, ao qual aspira – e o diz com todas as palavras – iniciar um projeto sistemático de pesquisa sobre o real. Ele deixa de lado o que é comum às éticas – refletir sobre o ideal, o bem e as formas para alcançá-los – e decide tomar o caminho contrário, ir ao inverso, no sentido “de um aprofundamento na noção de real”. Este projeto tem seu ponto alto no Seminário 19, quando profere Há Um, e se estenderá até o Seminário 23, quando estabelece o sinthoma como a via clínica privilegiada e afirma: “O real é sem lei”. A direção da cura não mais se orienta no sentido, mas no sem-sentido.

Na época, o real aparece por meio da associação que se estabelece entre o real, o impossível e a morte. Ao pensar sobre o real, dele nos afastamos porque ele é irrepresentável, não se diz, não se escreve, não se imagina. O real há. Não conhece o sujeito ou o ser; apenas existe como exterior ao saber. Não obedece a nenhum sistema, nem tem ordem. O real é sem lei.

“Não há relação sexual” é uma modalidade de Lacan dizer da separação radical do real com o simbólico e o imaginário.

O gozo é o real da experiência. É como gozo que o real se faz presente na clínica. O gozo verdadeiro, a satisfação pulsional, a Befriedigung, não se encontra nem no imaginário nem no simbólico, ela é da ordem do real. Entretanto, continua a dizer Lacan, a psicanálise é uma experiência que destaca a função fecunda do desejo.

Destaco duas questões cruciais nas perguntas: como relacionar gozo com desejo, se é que existe ainda interesse pelo desejo; e a segunda é sobre a transferência.

Começo pela transferência. Acho interessante entrar em detalhes sobre a transferência hoje, e fazê-lo precisamente desde o matema da transferência, que pertence ao segundo momento do ensino de Lacan, etapa na qual seu sustento clínico fundamental está no fantasma.

Para Lacan, fica claro que é o saber de Sócrates o que as pessoas amam. O saber que de Sócrates é uma joia agalmática, é propriamente o objeto agalma. Dessa maneira, Lacan outorga ao saber a categoria de objeto. É o objeto saber a causa do desejo do analisante. Realiza-se, no discurso analítico, no eixo diagonal que vai do sujeito ao saber verdadeiro, o S2 no lugar da verdade. O S1, que no matema da transferência se chama significante da transferência, transporta em si a escritura do gozo Um, gozo do campo Uniano, gozo opaco sem significante, porém que se presta à leitura. Alinhar-se ao gozo masoquista do sinthoma desde o primeiro momento implica ouvir o conselho, raro, que nos dá Lacan no Seminário 19. A frase é: “[…] o primeiro passo da experiência analítica é introduzir nela o Um, como o analista que se é.” (p. 123). Isto significa que, no próprio matema da transferência, o S1 inaugural da primeira entrevista – o significante da transferência –- já traz consigo as marcas do gozo Um. E Lacan repete que em todo S1 há algo do Um Uniano.

Ao fundar o campo Uniano, Lacan cria uma nova presença do significante e do corpo. O significante Uniano é um puro existir como gozo sem significante, ainda que produto de uma operação simbólica que permite existir sem ser.

Por meio do significante da transferência o sujeito se representa ante o saber do Outro. O futuro analisante crê que o Outro sabe. Há no início uma crença de estrutura, de veia. Diz Lacan que há uma resposta, que há quem pode saber a resposta. Este elemento estrutural é o Sujeito Suposto Saber.

Temos então um sujeito, a rigor deveríamos escrever falasser, representado pelo significante da transferência e um analista. Para fazer entrar o Um no jogo, o analista tem que se alinhar, ou seja, fazer uma leitura dos indícios do gozo masoquista nas ressonâncias, iterativamente presentes, ou seja, que se repetem nos diversos significantes 1 orientadores do discurso. Cabe mais falasser que sujeito não porque não há sujeito, mas porque o falasser indica que, além do sujeito, há um elemento substancial, o corpo e o gozo.

Ao saber ser capaz de alinhar-se às ressonâncias do gozo, o saber do analista vira um objeto de amor e coloca em movimento uma articulação inédita: o amor ao saber como objeto agalmático contido em um ser, o analista. É pela via do amor que se inicia a transferência, que atua permitindo o gozo mutar em mais amor e desejo. A mutação é uma noção nova que merece estudo especial. Esse amor ao saber participa da transferência de trabalho que inclui o estudo, a pesquisa e o trabalho da transferência desliza na diagonal do sujeito ao saber verdadeiro. Isto une transferencialmente associados do IPB à tarefa da Escola de pesquisar o que é um analista.

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