skip to Main Content

Como uma criança começa a se analisar? Ressonâncias do Carrossel.

Graziela Pires
Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)

Aposta, consentimento e enigma foram os significantes pinçados que engendraram um ponto de partida para uma possibilidade de escrita ao pensar o que se articula em cima das questões sobre a entrevista preliminar com os pais, com a criança e os efeitos desse primeiro momento em sua entrada em análise. Há alguns pontos chaves: a aposta no inconsciente (de Freud a Lacan), a importância da chegada em analise a partir de um “não saber”, a encruzilhada do mal-entendido e a relevância em se escutar os pais, para que algo dos sujeitos ali se apresente possibilitando que se descolem do Outro e as reverberações do que, a partir disso, se apresenta.

O ponto de partida:

O desejo do analista é sempre o de uma aposta no inconsciente. Numa orientação lacaniana, isso pode ser dito de outra forma: uma aposta no sintoma, desde que estejamos advertidos que, a aposta no sintoma, não é sem o inconsciente. Aquilo que a criança manifesta como perturbação, tem uma dimensão de sintoma que pode vir a ser construído em uma análise.

Isso nos debruçou sobre o inconsciente desde Freud, centrado na dimensão do recalcado, avançando até Lacan, quando se fala no sujeito do inconsciente como falasser, o que implica o corpo, o inconsciente pulsional e lalíngua. O falasser não é apenas um sujeito dividido que escapa ao significante. É um sujeito que tem um corpo e que as manifestações do corpo lhe escapam. Há aí o enigma na relação do sujeito, em como foi nomeado pelo significante do Outro e a interpretação deste, pelo sujeito, na sua relação com seu corpo, sem que tenha instrumento para decifrar, ficando aí marcado o mal-entendido de lalíngua. O analista de criança, parte disso.

Quem é você que bate à minha porta à espera de uma resposta sobre si mesmo a partir de nomes que já te deram?

Na clínica contemporânea, se apresenta de forma franca, um tamponamento diante de um “não saber”. Os excessos do diagnóstico, uma gama de nomes que tendem a abraçar tudo que trazem mal-estar para as crianças como: o espectro autista, depressão, TDAH. As crianças já chegam rotuladas por esses nomes, sem que se possa interrogar o que lhes acontece, qual o seu sofrimento. É fundamental, frente a essa exigência de “já ter que saber”, se permitir escutar a criança para se orientar a partir do que ela diz, a partir de um “não saber”.

Esse é o primeiro consentimento que o analista convoca aos pais: se permitirem elaborar um saber que, ao escutar a criança, isso pode vir a orientá-los.

A aposta no inconsciente é uma aposta no que escapa ao saber, não pela impotência, mas pelo fato de que não se pode saber antes de escutar o outro que fala, e que, fala também de um lugar onde está embaraçado com o que não sabe.

Isso é o que leva Lacan a avançar nessa dimensão do inconsciente para falar sobre o mal-entendido. Questão estrutural, que quer dizer que não se transmite, em uma comunicação absoluta, o que se pensa. No que se transmite, já há o que escapa de si mesmo na própria enunciação, fazendo-nos observar como isso chega na criança e como tem efeitos nela. Na clínica com criança é onde melhor se pode verificar os efeitos, as ressonâncias do mal-entendido, do não há relação sexual.

A linguagem que habita o sujeito e a partir da qual, ele tropeça quando fala, é uma linguagem que se constitui como uma elaboração em cima do mal-entendido, sobre lalíngua.

Nesse ponto, é importante estarmos advertidos da importância de separar os pais do Outro. Ao escutar os pais, isso implica em localizá-los como sujeitos a partir de suas divisões, suas dificuldades, seus impossíveis na vida e com a criança. É o que permite que o Outro possa aparecer, não como uma totalidade, mas como barrado ao mesmo tempo que, os pais possam assumir que eles têm uma posição de Outro para criança, na medida em que é suposto neles um saber. Aparecerem como sujeitos, permite que a questão que o sintoma coloca atinja um outro lugar que não o fracasso deles.

Há várias possibilidades de entrada em análise, visto que há vários momentos em que a criança se confronta com o enigma do próprio sintoma e com o seu sofrimento. Ao consentir com o processo, a criança pode se beneficiar, se autorizando ao trabalho que ali pode ser feito possibilitando a passagem da criança de objeto a sujeito.

O Carrossel nesse primeiro momento em que se perguntou sobre a entrada em análise com crianças, nos convocou à clínica em suas dificuldades, sempre atuais frente à demanda dos pais, da escola, e expectativa de respostas prontas que partem de rótulos e geralmente aparecem em cima de um imperativo: Resolva!

A analista, com seu estilo, desenha, a partir da orientação do ultimíssimo Lacan, um percurso onde possibilita aparecer a inconsistência do Outro, os furos do significante e a possibilidade de uma invenção que cada um pode fazer, no caso a caso da clínica.

Nota da autora: Como o texto foi baseado em ressonâncias de um encontro da atividade do “Carrossel”, não há referências no corpo do texto. Entretanto, as leituras realizadas e que contribuíram para meu escrito estarão expostas abaixo.


Referências Bibliográficas:
RÊGO BARROS, M.R.C. “A Resistência na psicanálise com crianças”, in Revista do CEPPAC, nº 3, Fort-Da. Rio de Janeiro, 1995.
RÊGO BARROS, M.R.C. “O sintoma da criança: uma questão para a família conjugal”, in Revista do CEPPAC, nº 4/5, Fort-Da. Rio de Janeiro, 1998.
LACAN J. “Eu sou aquilo que Eu é”, in Seminário Livro 16: De um Outro ao outro (1968-69). 1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LAURENT É. “Desangustiar?”, in A Sociedade do Sintoma. A psicanálise, hoje. 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007.
LAURENT É. “A análise de crianças e a paixão familiar”, in Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2011.
Back To Top