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O diabo apaixonado, em Lacan por todos os lados

Graziela Vasconcelos
Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)

Estamos no Seminário 16, de um Outro ao outro. O ano é 1968, quando Lacan nos apresenta, em sua terceira aula, A topologia do Outro.  Essa história, no entanto, começa anos antes. Mobilizado, desde antes de 1953, por seu interesse acerca da constituição do sujeito, Lacan vai avançando em seu desenvolvimento teórico e em 1958 vai propor a construção do grafo do desejo. Esse grafo, vocês verão, é fundamental para o que será desenvolvido no Seminário 16. Ainda no ano de 1958, formula em seu texto, A direção do tratamento e os princípios de seu poder, que o homem é um animal presa da linguagem. Mas é em 1960, por ocasião de um convite a participar de um Congresso em Royaumont, sob o título A dialética, que Lacan escreve o texto Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano, o qual apresenta uma abordagem direta da concepção do sujeito e do desejo em sua articulação com o Outro. Apesar de aqui Lacan não mencionar explicitamente, ele se serve, para todo o desenvolvimento do texto, de uma obra de Jacques Cazotte, O diabo apaixonado, publicada em 1772. A menção a esta obra ele fará apenas na aula 3 do Seminário 16, aula que agora vos foi apresentada. É uma obra cujo eixo central da narrativa gira em torno de uma questão, e suas consequências, enunciada pela voz do próprio diabo, Che vuoi?

Agora é preciso colocar em relevo o (x) do desejo materno, no entanto, para esse desenvolvimento, parto do seguinte ponto: do ponto em que Lacan propõe, “Partamos da concepção do Outro como lugar do significante”. É esse (x) do desejo do Outro, quer dizer, sua opacidade subjetiva, que constitui a substância do desejo e por meio do qual o desejo do homem ganha forma.

Eis por que a pergunta do Outro, que retorna para o sujeito do lugar de onde ele espera um oráculo, formulada como um “Che vuoi? – que quer você?”, é a que melhor conduz ao caminho de seu próprio desejo – caso ele se proponha (…) a retomá-la, (…) no sentido de um “Que quer ele de mim?”.

Essa rápida menção ao Outro em sua relação com o desejo que funda o sujeito, o fiz apenas para poder chegar ao ponto no qual pretendo trabalhar, O diabo apaixonado como referência para A topologia do Outro. Em determinado ponto do desenvolvimento dessa aula, Lacan irá interrogar a função do A (Outro) e sinaliza que o faz a partir da forma como introduziu o anzol, que foi desenhando no alto do grafo simplificado o ponto de interrogação e continua: “Chamei-o, fazendo referência à O diabo apaixonado, de Cazotte, de Che vuoi? – Que quer ele? Que quer o Outro? É o que me pergunto.”

Introduzo então, a referência que venho apresentar:

Alvare, capitão da guarda real de Nápoles e personagem principal de O diabo apaixonado, após presenciar uma conversa sobre a Cabala, deseja ardentemente um saber “sobrenatural” e, em nome disso, evoca, chamando por 3 vezes, aquele que parece ser quem carrega as respostas, o tesouro dos significantes, Belzebu, o portador de um saber sobre o desejo. Em resposta a esse chamado, o diabo lhe aparece sob a hedionda forma fantasmática de cabeça de camelo e, com uma voz tão horrenda quanto sua aparência, pronuncia: Che vuoi? Alvare se apercebe do terrível estado em que se encontra frente ao que faz ressoar a pergunta que lhe é endereçada, “Senti necessidade de apelar para todas as minhas forças; um suor frio ia esmorecê-las: fiz um enorme esforço”.

A “revolução” ocorre e Alvare se torna senhor, enquanto o diabo, seu escravo.  Não resisti a apontar aqui um traço de O diabo encontrado no seminário 17, quando Lacan diz que a revolução, o discurso do mestre a realiza por meio do giro que se completa.  Com essas posições assumidas, um novo, talvez sutil, mas certamente estrutural, movimento se dá. Ante a impossibilidade de se haver com o “horror” do desejo enigmático desse Outro, Alvare repreende seu escravo por se lhe apresentar sob aquela forma medonha, exigindo uma aparência mais conveniente e um tom submisso.

Então, o fundamental acontece, a partir da pergunta que se segue: “Mestre – pergunta o fantasma – sob qual forma devo apresentar-me para vos ser agradável?” ou, dito de outra forma, que Fantasia é preciso construir para velar o horror do objeto a? É então que de algo extraído de um corpo, uma cabeça de um camelo, passa-se a forma de uma cachorrinha, depois a de um pajem e por fim, a algo mais agradável, algo mais parecido consigo mesmo, um ser humano, nesse caso, uma linda mulher, uma linda, fantástica, idealizada mulher. Vejamos de outro modo: há aqui uma renúncia ao gozo sob o efeito do discurso e o que surge como função é o mais-de-gozar. E é aqui que começa a peleja do sujeito barrado na relação com o Outro em sua vertente da demanda.

O diabo, sob todas as formas assumidas busca servir a Alvare e satisfazer as suas necessidades, para isso bastando apenas pensar ou enunciar uma frase que, de alguma forma, permita entrever algo de sua necessidade. Tudo lhe era dado. Mas eis que da necessidade se passa à demanda. A cachorrinha lê seus pensamentos, executa todas as ordens de Alvare, lhe faz referências e espera dele algo que lhe confirme a satisfação de seu mestre. A confirmação, não há. É então que Alvare atribui à cachorrinha o nome Biondetta e lhe dá uma ordem, nesse momento o animal se transforma em um pajem, em um traje de libré. Este é Biondetto que se desdobra para garantir a Alvare e aos seus amigos o mais perfeito jantar e quando Alvare solicita que lhe traga Fiorentina com sua harpa, o pajem se transforma na referida dama, ela toca, canta e encanta a todos os homens presentes. Voltando à sua forma, o pajem, depois de servi ao seu amo, pede apenas um espaço ao lado dele, que lhe nega e tenta dele livrar-se. O pajem então se lhe revela o sexo, é uma mulher, diante desse ser, feminino, Alvare consente que ele possa ficar no quarto, mas sob a condição de dele não se aproximar e para isso garantir, ameaça a pajem com o mesmo que horror que dera origem a tudo: “Procure acomodar-se de modo que eu não a veja nem a ouça; à mínima palavra a ao mínimo movimento que me causem inquietação, engrossarei a minha voz para lhe perguntar Che vuoi?”, aqui estaria a questão “Que quer ele de mim?”. Nessa forma, Biondetta, a mulher se derrama aos pés de Alvare, clama por viver ao seu lado, tenta por muitas vias que ele a tome como sua e entregue a ela todo seu ser e existência, mas ele se esquiva, afasta-se desse lugar. É quando, ao ver Biondetta vítima de um ataque comandado por uma outra mulher com que Alvare se relacionava, à beira da morte, ele então, frente a esse ser que tudo por ele sacrificou, entrega-se totalmente: “Se me fores devolvida, serei teu; reconhecerei tuas bondades; coroarei tuas virtudes e tua paciência; ligo-me por laços indissolúveis e farei meu dever o tornar-te feliz pelo sacrifício cego de meus sentimentos e vontades.”

Biondetta sobrevive e Alvare a toma como sua e se entrega sem medidas a ela. Biondetta revela ao seu amado que ela é um ser fantástico, uma sílfide que se tornou mulher para poder unir-se a ele. Um mês de doçuras e segue-se então um tormento eterno. Biondetta quer casar-se, quer fidelidade plena, juras de amor eterno, entrega absoluta, ela exige que ele declare que será dela e que essa posição será imutável. “Oh! Biondetta! Você não vê meu coração! Se visse pararia de estraçalhá-lo!”. Para casar-se Alvare se vê, por questão de respeito, obrigado a pedir o consentimento de sua mãe e nessa jornada de retorno ao lugar de onde o sujeito advém, sofre com os horrores imputados por Biondetta que tenta fazê-lo desistir de colocar entre eles sua mãe. Alvare continua, apesar de tudo, completamente tomado pelo enlace amoroso, vendo apenas a mulher que Biondetta representa. É quando, ao dizer: minha cara Biondetta, tu me bastas, ela responde rapidamente, “Biondetta não deve te bastar, […] é preciso que saiba quem eu sou… Eu sou o diabo… ao que acrescenta: “dize, enfim, se conseguires, com a mesma ternura que sinto por ti: Meu caro Belzebu, eu te adoro…”. Estaríamos aqui em um final de análise? Sem o recurso da fantasia, com Um gozo desvelado, o sujeito é convocado a saber fazer com seu gozo, a amar e identificar-se ao seu sinthoma e poder enunciar, sou como gozo.


REFERÊNCIAS
CAZOTTE, J. O diabo apaixonado. Rio de Janeiro. José Olympio, 2013.
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro. Ed. Zahar, 1998.
LACAN, J. O seminário livro 16, de um Outro ao outro. Rio de Janeiro. Ed. Zahar, 2008.
Lacan, J. O Seminário, livro 17, o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1992.
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