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O laço se faz com a palavra

Maria Clara Carneiro Bastos
Aluna do Curso Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana (TPOL/IPB)

Do impossível…

Educar, governar e psicanalisar são ofícios impossíveis, segundo Freud (1973/1996) em Análise Terminável e Interminável, onde algo dessa impossibilidade demonstra sua face segundo o fator quantitativo da pulsão como “um obstáculo no caminho da cura analítica” (p. 28). Como num tempo de compreender, retomo a fina sensibilidade freudiana, como arte de leitura do singular ao localizar a análise na posição do impossível, que só encontra via de possibilidade a partir da palavra. De pronto, uma questão irrompe: o que está em jogo na interpretação do analista?

Por sua posição, longe de endereçar respostas como verdade, como impera o discurso científico, a psicanálise abre espaço para o vazio. A causa analítica demonstra sua marca, ética e política desde O projeto para uma psicologia científica, onde a mesma tem sua origem na teoria freudiana, apresentando uma descontinuidade radical com a racionalidade de seu tempo. Freud (1900/1969), funda a psicanálise ao desvelar o sentido oculto dos sintomas conversivos através dos casos clássicos de histeria, identificando que ali onde o recalque impera, o corpo fala, indicando um saber inconsciente.

Na virada epistemológica de 1920, Freud (1920/2020) introduz o mais além do princípio do prazer, indicando que há sempre um resto pulsional que não atinge a satisfação, por isso retorna. Como efeito, apresenta os limites desse ofício frente a este resto, irrepresentável, que está na base da compulsão à repetição e na inapreensão da castração. O traumático insiste e persiste, apesar do prazer e desprazer que provoca. Como nos indica Lacan, há um limite na ordem simbólica incapaz de sustentar a homeostase do corpo vivo.

A psicanálise opera, sobretudo, a partir do fracasso. Aqui, fala-se do fracasso que não tem como oposição, o sucesso. Trata-se de um fracasso ímpar, que desvela as marcas do inconsciente de cada um. Freud (1900/1969) em A interpretação dos sonhos, lança mão do campo do realismo pragmático e sincrônico, dirigindo-se ao saber de ordem inconsciente e suas formações, que ao interpretar a composição e os significados ocultos nos sonhos encontra as brechas do aparelho psíquico, demarcando seu corte inaugural.

O fracasso é o que marca a entrada em análise, mas, também, anuncia seu fim. É preciso que o sentido fracasse para que advenha o que está em jogo com o sintoma, como um exercício contínuo de desinterpretação. Éric Laurent (2010) disserta que “o psicanalista aborda tudo do ponto de vista do fracasso: o ato falho, o sintoma, o ato sintomático, o truque que rateia, a coisa que manca. Sobre as coisas que têm sucesso, o psicanalista não tem muita coisa pra dizer” (p. 99). Há, com isso, uma virada que se dá a partir da forma como a psicanálise compreende os fenômenos inconscientes.

O real, invenção lacaniana para abordar o impossível que chega na clínica, traz a dimensão do furo, do que escapa a nomeação e não é passível à decifração, é o sem sentido, a marca de gozo de cada um. O impossível que chega na clínica, demonstra as nuances daquilo que a linguagem não alcança e a análise não apazigua, sob o qual o axioma “não há relação sexual” (LACAN, 1972/2008) demonstra a face da impossibilidade. A psicanálise, como uma práxis, dá lugar ao sujeito que o racionalismo recusou, distinguindo-se da ciência porque se endereça a um sujeito responsável, e, é a partir dessa posição que o ato analítico opera.

A operação analítica se faz na extraterritorialidade que permite que o desejo do analista seja “o lugar de onde está de fora sem pensar nele, mas no qual encontrar-se é ter saído para valer” (LACAN, 1967-1968). Mas ao falar desse lugar, me defronto com esse espaço que “se faz em ato”, e é nesse ponto que o ato e a leitura, como um mais além da interpretação, tornam-se acontecimento, no sentido da contingência. Sublinho que, para Lacan, a experiência excede a realidade no sentido da razão kantiana. É nesse sentido que a questão que alicerça uma definição para a experiência psicanalítica está em tomar as coordenadas que excedem as margens dos registros Simbólico e Imaginário, dirigindo-se, sobretudo, ao Real.

Miller (2015) em Ler um sintoma, discorre que o ato analítico se faz na experiência do inconsciente. Aqui, o inconsciente já traz a marca da orientação ao Real, que causa um saber sem sujeito, e, é justamente dessa posição que “faz a verdade” (LACAN, 1967/2003, p. 302-310) do discurso analista. Não à toa, é no engano do sujeito suposto saber que habita a verdade, tendo como máxima “fazer-se produzir do objeto a com o objeto a” (LACAN, 1969/2003, p. 308).

O que me parece é que o cerne à questão não está, propriamente, no ato analítico, mas nas condições que ele cria para tal. Desse modo, entendo que é pelo ato que se escreve e que se lê, lugar que faz funcionar o saber na posição de verdade, mas, também, a faz vacilar. E, isso se extrai da experiência de cada análise, sempre singular. Nesse ponto, Paulo Gabrielli no Núcleo de Investigação da Técnica Psicanalítica deste Instituto adverte: “a presença do analista é um conceito, não uma pessoa”.

O psicanalista “autoriza” as condições desse ato numa temporalidade que lhe habilita da sua função. O psicanalista opera a partir do “não penso”. Esse “não penso” é concomitante com a proposta do objeto a. É poder dar a condição para que faça valer a dimensão de semblante dos significantes mestres que amordaçam o gozo no fantasma. E essa leitura só se faz no Um. Por isso, não há como pensar em interpretação analítica sem tocar na dimensão do Um. Da ética que estrutura a operação analítica e traz a marca de um fazer político.

Do Um…

Em um primeiro tempo do ensino de Lacan, a partir do Seminário A identificação, a questão do Um estava esclarecida a partir daquilo que Freud denominou de traço único. Nesse momento, todo significante é constituído pelo traço, tendo em sua gênese a marca de um traço único como suporte. Ele parte da teoria de Freud sobre a identificação, transformando o único freudiano em unário. Essa operação introduz essa concepção do um, fundamento que demonstra a diferença do conceito de identificação pela via simbólica, dando lugar de que o um perpassa as identificações imaginárias.

O traço unário se apresenta no lugar do apagamento do objeto, sendo um traço de pura diferença, que marca a divisão do sujeito pela própria linguagem, onde algo, que diz respeito ao objeto, se perde. O nome próprio seria um exemplo de traço unário, na medida em que se situa como marca distintiva e não se traduz.

É o traço unário que inscreve no real do ser falante a diferença como tal, posto que no real não há nada. O traço apaga a Coisa, dela restando apenas rastros. O traço unário é, portanto, significante não de uma presença, mas de uma ausência apagada que, a cada volta, a cada repetição presentifica-se como ausência. É aí que Lacan localiza o ponto radical, suposto na origem do inconsciente. Ele aproxima a função do traço unário do que Freud chama de narcisismo das pequenas diferenças, dizendo que é a partir de uma pequena diferença, que acomoda o propósito narcísico. Nesta direção, o sujeito se constitui como portador ou não deste traço unário. Nesse ponto, há o Um Uniano.

Mas, afinal, o que está em jogo na interpretação do analista? Lacan (1958/2003) diz que “a psicanálise verdadeira tem seu fundamento na relação do homem com sua fala” (p. 173). É por reconhecer a impossibilidade de um desejo satisfeito, que a própria relação transferencial se estrutura na falta, no “território das bestialidades”, no irrepresentável. A palavra é o rastro, o que permite a posição do analista produzir efeitos, é por sua via que se a vacila as resistências e que se faz o laço transferencial. Não sem angústias, todo laço se faz, senão, pela palavra.  


REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Em: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. IV e V, Rio de Janeiro, Imago, 1969.
FREUD, S. (1920/2020). Além do Princípio do Prazer. In Obras Completas de Sigmund Freud, São Paulo, Autêntica.
FREUD, S. (1937/2010). Análise Terminável e Interminável”. In Obras Completas de Sigmund Freud, São Paulo, Companhia das Letras.
FREUD, S. (1950[1895]). Projeto para uma psicologia científica. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 385-529.
LACAN, J. (1958/2003). A psicanálise verdadeira, e a falsa. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LACAN, J. (1967). Alocução sobre o ensino. In: Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. pp. 302-310.
LACAN, J. (1967-1968). O Seminário, Livro XV, O ato psicanalítico. Inédito.
LACAN, J. (1969). O ato psicanalítico. Resumo do Seminário de 1967-1968. In: Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. pp. 308.
LACAN, J. (1972/2008). O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J. A Identificação. In O Seminário, livro 9,1961-2.
LAURENT, E. (2010) “O nome do Pai entre o realismo e nominalismo”. In: Opção lacaniana, nº 58. São Paulo: Edições Eolia.
MILLER, J-A. (2010). Extimidad. Buenos Aires: Paidós.
MILLER, J-A. (2015). Ler um sintoma. In: Opção Lacaniana, n.70. São Paulo: Eolia.
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