Lapsus, a-mostra… sua causa Pablo Sauce “Membro da EBP/AMP Caros leitores, Os aguarda neste número…
Toxicomania, sentimento de vida e a lei do coração
Anderson Viana
Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)
O enfoque psicanalítico das relações que o toxicômano estabelece com a droga situa-se numa gama de problemas e impasses conceituais, no âmbito dos quais, o debate sobre sua delimitação como uma categoria clínica dotada de uma especificidade própria se destaca de maneira decisiva. E, a despeito das dificuldades de natureza conceitual, deve-se tomar a toxicomania como um capítulo da história da psicanálise que mais consegue se aproximar dos próprios limites tanto de seu saber quanto de sua prática. (Santiago, 2001). Ao tratar do assunto, o autor constata que:
“…nada do consumo abusivo de droga se compara ao que foi, para psicanálise, o sintoma conversivo, o pensamento obsessivo- compulsivo ou a ideia delirante persecutória, que permitiram a postulação de estruturas clínicas freudianas clássicas, a saber, respectivamente, a histeria, a neurose obsessiva e a paranoia” (p. 9).
Certamente esta informação da o tom e a magnitude das dificuldades encontradas pela cínica psicanalítica para o enfrentamento das toxicomanias. Sabe-se que tanto a histeria, quanto a neurose obsessiva, assim como as psicoses são concebidas pela relação que o sujeito estabelece com o Outro. Santiago (2001) observa que a inscrição do Outro não segue à risca a separação estanque entre neurose e psicose, ou seja, entre o recalque e a foraclusão, não sendo mais suficiente a presença do Nome-do-pai para dar conta do fenômeno da toxicomania. Nesta perspectiva, levanta-se como hipótese que ainda que ele possa estar presente, seus efeitos não são necessariamente capazes de agir ou legislar a favor do sujeito. Nesta concepção, a droga aparece justamente como solução.
Ao propor a noção de sentimento de vida, Miller (2012) organiza-a a partir do que ele nomeou de tripla externalidade: social, corporal e subjetiva, observando que seus indícios devem ser situados nos três registros: simbólico, imaginário e real. Sob este prisma, a investigação clínica sobre o sentimento de vida traz, para o centro da análise, a desordem na junção mais intima expressa na maneira como o mundo é experimentado pelo sujeito. Destaco, em relação à externalidade subjetiva, a identificação não dialetizável do sujeito ao objeto a como dejeto. Importa aqui identificar índices de um vazio não dialetizável.
Em Donc, seminário que Miller (2011) se dedica à lógica da cura, ele identifica uma outra desordem, que pode eventualmente caracterizar uma posição toxicômana. Nele, Miller (2011) propõe o que seria a estrutura geral do desconhecimento. De acordo com Miller (2011), crer-se não é crer-se outro, mas sim crer-se em si mesmo. Como ele afirma, o desconhecimento é um delírio onde há a foraclusão do Outro, ou seja, se é uma crença, consiste em crer em uma identidade de si que não passaria pelo Outro.
Miller (2011) afirma que:
“O problema do desconhecimento não é tanto Eu sou o outro, mas diretamente a equação eu = eu. Haveria que inventar aqui um verbo como mismar-se; essa equação é a do eu que si misma, que conotamos com o que convencionamos chamar de narcisismo. De um modo tal que o desconhecimento é um delírio de identidade. Consiste em pôr o Outro fora de si. E como podemos chamar loucura de desconhecimento, encontramos aqui seu princípio”. (p. 115)
De acordo com Lacan (Miller, 2011), o ser deve ter uma abertura que está na fronteira, que é limite em relação ao mundo. Mas, na figura hegeliana da loucura, a lei do coração tanto assegura uma identidade consigo mesmo, quando se opõe a uma ordem do mundo que ela denuncia como uma desordem. Miller (2011) exemplifica: uma desordem para conveniência de suas exigências, uma desordem de injustiça, ou inclusive, num certo momento de seu desenvolvimento, uma desordem de individualidades competidoras. A lei do coração é uma expressão de Lacan, que denota uma insurgência contra o mundo em nome dela.
Miller (2011) citando Lacan, traz esta definição.
“ali onde há ordem no mundo, onde seu ser atual se manifesta como qualquer coisa da realidade efetiva, o eu se desconhece e somente se reconhece no lugar da lei do coração”. (p.115)
Segundo Lacan (citado por Miller, 2011), a lei do coração é uma imagem atual e invertida desta ordem do mundo. De acordo com o autor, Lacan chama de discordância fundamental entre o eu e o ser. Há um duplo desconhecimento: o eu desconhece a posição verdadeira de seu ser, assim como reconhece este ser atual em sua imagem invertida. De outro modo, conclui o autor, a função fálica não se articula ao Nome-do-pai.
O que efetivamente se lê em Hegel, de acordo com Miller (2011), é que, em efeito, quando o eu se lança na ação, golpeia-se a si mesmo pela via do contra-golpe social. Como diz Lacan (Miller, 2011), é dizer o que que lhe faz saber que perturba, e o que é o percurso mesmo do mundo onde sua ação se desnaturaliza e se volta contra ele mesmo.
Esta é uma posição subjetiva sem saída, bloqueada e não suscetível de desenvolvimento dialético por não atrelar a função fálica com a função do Nome-do-pai. É possível dizer dela, uma posição toxicômana? Esta saída, como afirma Miller (2011), não pode ser obtida pelo eu, pois ele é nosso autor que mais faz a mediação contra ordem. Lembro de um aluno que no primeiro dia de aula, apresentou-se com seu primeiro nome e em seguida disse que era dependente químico em recuperação, para surpresa do restante da turma. Só um sujeito que forclui o outro, no caso, a instituição onde se apresentava, pode ser tido como louco, afinal, usar uma doença como principal credencial ou significante mestre para se apresentar em uma sala de aula não é o habitual ou o que se espera.
Neste caso, ele vinha de muitos anos frequentando o NA e lá este tipo de apresentação é o habitual. Aqui está exemplificada como age a estrutura geral do desconhecimento na posição do sujeito frente a novos apelos do simbólico.
Por fim, Miller (2012) também se refere a uma posição depressiva em que o sujeito supostamente se identifica com um objeto mau interno. Lacan evidenciava o extremo arcaísmo da subjetivação de um Kakon. Segundo Miller (2011), Lacan o evocava em “Acerca da causalidade psíquica” ao citar a análise psiquiátrica por Paul Guiraud, dos assassinatos imotivados em que esta aparente falta de motivo se revela definitivamente como o ataque efetuado pelo sujeito contra este outro que ele situa, na verdade, em seu próprio objeto mau interno.
O “extremo arcaísmo” significa que, mais além das identificações com a imagem do outro, haveria uma relação com o objeto mau – e no fundo, inimaginável. Segundo Miller (2011), esta indicação, que é o modo como Lacan retoma Melaine Klein, fica em espera por muito tempo no seu ensino que só depois de grandes parêntes, dará todo seu valor a este “extremo arcaísmos da subjetivação de um Kakon”, quando estabelece, como o nível mais primordial da constituição de um sujeito, sua relação com o objeto a. Esta expressão citada anteriormente anuncia o que em última instância será por certo o mais memorável próprio de Lacan a teoria analítica, a saber, o objeto a. Assim, a equação eu = eu, e suas implicações, assim como as consequências da subjetivação de um Kakon podem ser índices, inicialmente, não ligados à psicose ou neurose. Entretanto, certamente, à toxicomania.
A posição de êxtimo do objeto a é que faz furo, é o lugar do íntimo, do mais “interno” e é neste lugar que habitam as desordens. O conceito de falta, correlato ao objeto a, traz consigo a ideia de que o sujeito não lida com um interno e um externo, mas com a castração, o gozo, o falo e o Outro. A angústia é efeito da presença, do surgimento do objeto a, ali onde deveria faltar. Onde há angústia, há falta da falta. O próprio processo de análise conduz de um suposto fora, um no outro, para um em mim, que depois tende a uma fusão: não sou eu nem o outro, é a falta, o real. (Mankoff, 2012)
Se as externalidades estão relacionadas ao objeto a, e mais especificamente a externalidade subjetiva relativa à identificação ao objeto a como dejeto, isto tem implicações no modo de gozo do sujeito. A proliferação de objetos é uma marca de nossa época, o que nos permite afirmar que o objeto tem este caráter de dejeto e uma função de gozo. Em 1975, no encerramento das Jornadas de Cartéis da Escola Freudiana, Lacan irá afirmar que a droga é o único objeto que permite romper o casamento com o pequeno pipi. De outro modo, àquele para quem sua subjetividade lhe é externa e não êxtima. Ou ainda, como afirmou Eric Laurent em “Três observações sobre a toxicomania”, uma das consequências dessa ruptura entre Nome-do-pai e função fálica é a ruptura com o nome do pai por fora da psicose.