Lapsus, a-mostra… sua causa Pablo Sauce “Membro da EBP/AMP Caros leitores, Os aguarda neste número…
Urgência subjetiva: que tempo é esse?
Rafael Chaves de Barros
Associado ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)
Na enchente de 22, a maior de todas as enchentes do Pantanal, o canoeiro Apuleio vagou três dias e três noites por cima das águas, sem comer sem dormir — e teve um delírio frásico. A estórea aconteceu que um dia, remexendo papéis na Biblioteca do Centro de criadores da Nhecolândia, em Corumbá, dei com um pequeno caderno de Armazém, onde se anotavam compras fiadas de arroz feijão fumo etc. Nas últimas folhas do caderno achei frases soltas, cerca de 200. Levei o manuscrito para casa. Lendo as frases com vagar imaginei que o desolo, a fraqueza e o medo talvez tenham provocado, no canoeiro, uma ruptura com a normalidade. Passei anos penteando e desarrumando as frases. Desarrumei o melhor que pude. O resultado ficou esse (os versos dessa parte do livro). Desconfio que, nesse caderno, o canoeiro voou fora da asa.
(Manoel de Barros, 2004, p. 19, Livro das ignorãças)
Seguindo os prumos freudianos de que a poesia e a literatura, muitas vezes, se antecipam à psicanálise; a partir desse pequeno preâmbulo que introduz a segunda parte do “Livro das Ignorãças”, de Manoel de Barros, podemos percorrer a história do personagem Apuleio que, à deriva, se encontra numa situação em que a repercussão no corpo, se traduz em angústia. Frente ao Real impossível de ser simbolizado, o personagem rompe com o campo simbólico e se desencontra.
É nesse tom de perplexidade que muitos chegam à Rede de Psicanálise Apllicada-RPA¹, e desembarcam num estado de urgência. Esse estado caracterizado é: “como àquele que aparece como uma quebra na linha do tempo, tira o sujeito de suas rotinas e o obriga a desenvolver uma nova relação com a realidade” (SELDES, 2019, p. 20, tradução nossa). Um acontecimento que lança o sujeito na direção do encontro traumático com o Real, impossibilitando-o de dar alguma significação para aquilo que lhe atravessa, uma vez que suas referências simbólicas-imaginarias não lhes são suficientes.
Dessa maneira, para cada urgência, reivindica-se uma certa dignidade. Como nos aponta Seldes (2008), nosso objetivo de interesse não se encerra na compreensão fenomênica da urgência, mas, sim, de que modo a passagem de uma urgência se translada para uma urgência subjetiva. Enquanto tal, não se produz sem uma oferta de escuta do analista; permitindo que o que não passa pela palavra, possa ser elaborado de alguma maneira.
Se não passa pela palavra, tem valor antecipado de ato. Logo, na experiência da urgência, o sujeito pode se atualizar de diferentes maneiras, como: se ver petrificado, paralisado, congelado no tempo, ou até mesmo na iminência de uma passagem ao ato. Sem borda, o sujeito se apressa em querer se desvencilhar de seu mal-estar, buscando uma saída pautado pela lógica da ação, sem ao menos, levar em consideração o devido tempo de compreensão. Portanto, o tempo de compreender, aqui, é elidido; pois o sujeito se precipita em razão de estar acuado, imbuído noutra relação com o tempo.
Nessa linha reflexiva, Lacan (1945/ 1998), em seu texto O Tempo Lógico e a Asserção de Certeza Antecipada, assinala uma importante engenharia que fundamenta o modo como o sujeito se insere na linha do tempo, cujo seu alicerce é guiado por um tempo lógico, e não cronológico. Mas a título de ilustração, apresenta esse tempo através de uma escansão temporal, onde: a primeira, consiste no instante de ver- definido como àquele instante que se fulgura algo; o tempo de compreender- onde a elaboração é levada em consideração; e o momento de concluir- quando se conclui algo a partir de uma certeza antecipada.
Entretanto, na urgência, no que tange a perspectiva lógica, o instante de ver parece dragar o momento de compreender, a ponto de se fundir com o momento de concluir. Ou seja, a experiência temporal da urgência é permeada por um curto-circuito; tirando de cena o tempo de compreender; tempo esse, necessário para que se deduza algo a partir da cadeia significante que ali opera, onde o sujeito emerge entre um significante e outro, apontando para o desejo, a fim de que se dê um contorno possível para algo que não se sabe.
Contudo, na urgência, esse tempo não comparece; impossibilitando, assim, o advento do sujeito. Em vista disso, podemos pensar uma outra vertente da urgência, ou, um outro lado para qual a dobradiça aponta: denotada enquanto urgência de um dizer; dimensão na qual não podemos perder de vista.
Nessa direção, o manejo do tempo lógico se apresenta como um importante operador clínico na clínica das urgências, tencionando introduzir uma pausa na pressa em que o sujeito se encontra absorvido, fusionado no curto-circuito entre o instante de ver e momento de concluir, e na iminência de se antecipar a um ato. Vale ressaltar, que essa antecipação, ou melhor, pressa em concluir, se difere da pressa em concluir da asserção da certeza antecipada; pois a pressa na urgência não comporta um contorno significante a partir de um intervalo.
Portanto, a riqueza de se pensar o tempo lógico, na condição de operador clínico, pode auxiliar a abertura para uma outra temporalidade. E, para que o tempo de compreender opere, o analista precisa se predispor através da sua escuta, a colocar-se na posição de destinatário das palavras que o sujeito lhe endereça, de modo que a associação livre seja posta em jogo, equacionando um contorno possível a algo que se rompeu na cadeia significante em razão de uma urgência; podendo, então, de alguma maneira, ser representado. Mas, isso leva tempo, singular de cada sujeito, cuja sua incidência o poeta, no pequeno texto acima já antevia: “pode passar anos penteando e desarrumando as frases” (BARROS, 2004, p. 19). Contudo, independente do tempo que isso leve, esperamos que o sujeito restabeleça o laço com a palavra a partir de sua capacidade inventiva; assim como o desfecho do personagem Apuleio que se revela, somente, num tempo posterior (ou, “só depois”): “Desconfio que, nesse caderno, o canoeiro voou fora da asa” (BARROS, 2004, p. 19).