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Édipo, Histeria e Neurose sem Édipo
Fátima Sarmento
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise
O complexo de Édipo, assim como o lugar que Freud atribuiu ao pai, situam-se no âmago da experiência analítica. Isso levou Lacan, no seu primeiro ensino, a afirmar que “não existe a questão do Édipo quando não existe o pai, e, inversamente, falar do Édipo é introduzir como essencial a função do pai” (LACAN, 1957-1958/1998, p. 171). Vale destacar que Freud tinha uma concepção religiosa do Pai. Para ele, Deus era um substituto do Pai, acreditar em Deus era um reflexo da crença no Pai. A relação entre o complexo paterno e a fé em Deus era tão estreita que Freud, desde a invenção da psicanálise, ao se debater com o declínio da paternidade, atribuiu o nascimento da psicanálise ao declínio das religiões. De certa forma, há uma razão a ser considerada: se as neuroses se multiplicaram a partir da decadência das religiões, é porque na falta do pai, como ponto de identificação e sem o apoio das religiões, só restou ao sujeito que se encontrava à deriva fazer sintoma. Daí o sintoma neurótico dizer respeito ao Pai.
Aqui, podemos isolar um ponto que diz respeito ao seguinte: ao introduzir o pai na psicanálise, Freud introduziu também a psicanálise na religião. Por outro lado, Lacan deixa claro que o sentido sempre remete ao Nome-do-Pai, é sempre religioso. Todo o esforço de Lacan foi tentar evitar que a psicanálise se transformasse em uma religião, já que ela tende a isso, caso a interpretação só opere pelo sentido. Uma questão, então, será percorrida neste artigo: como sair do sentido garantido pelo discurso religioso e pela ciência?
Édipo e Histeria
No texto A psicologia das massas…, Freud (1921/1990) relacionou a identificação primária com o pai, que exerce essa função pelo fato de ser merecedor do amor. Na perspectiva da teoria freudiana, o amor ao pai corresponde a salvar o pai, e era nessa direção que Freud dirigia o tratamento. Ao se orientar pelo Édipo no atendimento com as histéricas, Freud cometeu equívocos e isso pelo fato de que sua primeira formulação sobre o Édipo apresentava uma concepção evolucionista ao subordinar o desenvolvimento psíquico à maturação biológica do corpo. Assim, nesse primeiro tempo, o processo edipiano seguia uma inclinação “natural”: a mulher deve dirigir-se ao homem e vice-versa. Em um segundo tempo, o Édipo passa a ser uma estrutura cujo correlato é o complexo de castração que, por sua vez, é definido como se fosse ligado à ausência ou à presença do falo. Vale dizer que a psicanálise só pôde avançar quanto à teoria do Édipo e da castração com a criação do falo como conceito.
Ao tomar o Édipo como ponto de partida no tratamento de Dora, Freud (1905/1972) insistiu no amor desta pelo Sr. K, empurrando-a para ele. Segundo Lacan (1951/1998), isso decorre de um preconceito de Freud que se exprime com simplicidade no conhecido refrão: “tal como a linha para a agulha, está a menina para o menino”.
Vem daí a interpretação errônea de Freud de que o Sr. K é o objeto de desejo de Dora. Para Lacan, Freud no primeiro momento não conseguiu identificar o que realmente interessava a Dora – instalar a Outra Mulher no lugar do saber. A histérica identifica-se com o homem enquanto portador do órgão, porém não para gozar, mas para que a Outra mulher a prive dele. Assim, ela sustenta seu desejo perante o desejo do Outro como desejo insatisfeito e este é seu modo de gozo. Ela goza de ser privada do gozo. É a Outra quem goza como uma mulher em seu lugar. Ao supor à “Outra Mulher” um saber sobre o gozo do homem, a histérica recusa o próprio corpo. Dizer que à histérica só interessa outro sintoma é o mesmo que dizer que ela recusa o corpo a corpo. Isso pressupõe que na histeria fica em suspenso a construção de um corpo feminino. A relevância do tratamento com Dora se deveu ao fato de que ela ensinou a Freud que era preciso ir além do Édipo. Se o Édipo se apresentou inicialmente a Freud como uma solução, aqui ele se constituiu como um problema.
Para Lacan, a estrutura de uma neurose é essencialmente uma questão. O grafo do desejo é o que melhor explora o território das perguntas e é animado pelas questões: Que queres? Que sou no desejo do Outro? Essas questões vão modalizando-se e na histeria se reduzem a: “O que é uma mulher? A pergunta é sobre o desejo, sobre o feminino. O lado direito do grafo é o das perguntas e o esquerdo é o das respostas. Na neurose, a pergunta chega a colocar-se, porém não é desenvolvida já que o sujeito recorre ao curto circuito da fantasia para não se confrontar com o buraco enigmático do S (Ⱥ).
Fig. 1 – . O grafo do desejo
Fonte: LACAN (1957-1958/1998), o seminário, livro 5, p. 404.
Assim, na neurose, a resposta antecipada se põe no nível da fantasia para não chegar ao lugar onde a pergunta não tem resposta. Desse modo, a fantasia funciona para o sujeito como defesa para não o aproximar do lugar onde não há resposta. Na psicose, a estrutura da pergunta se aborta no primeiro nível do grafo e, antes que a pergunta possa colocar-se, a resposta se faz presente no eixo especular.
No Seminário 5, Lacan (1957-1958/1998) se serve do grafo para situar os tempos do Édipo. No piso inferior, temos uma etapa fálica, primitiva, e muitas coisas podem aí se fixar – distúrbios, perturbações e identificações perversas. No segundo tempo, mais acima, “o pai intervém como privador da mãe”. No terceiro tempo, o pai intervém como aquele que tem. É a saída do complexo de Édipo e esta sugere uma identificação com o pai como Ideal do eu. Na histeria masculina, o pai não é tomado como objeto de identificação, mas como objeto de amor. Trata-se aqui do Édipo invertido. Para Lacan (1957-1958/1998), fazer-se amar pelo pai consiste em passar, primeiramente, para a categoria de mulher, e aí estaria a forma da homossexualidade inconsciente que põe o sujeito em uma situação conflitante: por um lado, o retorno constante posição homossexual em relação ao pai; por outro, sua suspensão, isto é, seu recalque em razão da ameaça de castração que essa posição comporta. A identificação da histérica com o pai vai dificultar sua posição como mulher. Nas fórmulas da sexuação, como veremos no desenho 2, a histérica está situada do lado do homem. Na histeria masculina, o homem vai situar-se do lado da mulher. É importante salientar que, conforme Monribot (2019), o sujeito do inconsciente – do qual a histérica é o paradigma – está sempre na vertente masculina seja qual for o sexo do sujeito em questão. A maternidade é uma versão feminina do repúdio à feminilidade. Uma mulher freudiana é aquela que não tem (nesse caso, um pênis), mas ela pode opor-se a isso tornando-se aquela que tem (nesse caso, uma criança). Do ponto de vista freudiano, tornar-se mãe não é tanto uma realização da feminilidade, e sim um distanciamento dela. Ter um filho é a realização de uma promessa fálica infantil feita na lógica edipiana.
Fig. 2. Quadro da sexuação
Fonte: LACAN (1972-1973/1985), o seminário, livro 20, p.105.
Neurose sem Édipo
No Seminário 17, Lacan (1969-1970/1992) é contra a ideia de pôr a identificação com o pai como primária, porque isso entra em contradição com tudo o que a experiência estabelece sobre a primazia da relação da criança com a mãe. A propósito disso, Lacan (1938/2003), desde 1938, ao situar o declínio da imago paterna, já anunciava a possibilidade de patologias ligadas ao supereu materno sem mediação, apontando desde aí para uma nova clínica, para o mais arcaico da constituição do sujeito. Ainda que Lacan (1955-1956/1985), no Seminário 3, tenha comentado a propósito da psicose de que algo do Édipo aí não se tenha completado, e tenha defendido que não existe neurose sem Édipo, no Seminário 5 (LACAN, 1957-1958/1998), ele afirma que a experiência levava a admitir que podia haver sujeitos que apresentassem neuroses em que não houvesse Édipo algum – ideia correlata ao supereu materno. Aliás, nesse texto de 1938, Lacan mostra as dificuldades de sublimação diante dos gozos que se apresentavam desenfreados, articulando com o declínio do pai as patologias ligadas ao supereu materno sem mediação: como as toxicomanias, anorexias. Lacan ainda comenta, em 1938, sobre os problemas enfrentados pelo sujeito com as operações de causação, ou seja, dificuldades de alienar-se para produzir a separação.
Ainda no Seminário 5, Lacan (1957-1958/1998) assinala que é justamente na fase pré-edipiana que se instalam as perturbações que se produzem no campo da realidade. Aí ele localiza, de um lado, as perversões e, de outro, as psicoses, admitindo que nos dois casos é a função imaginária que está em jogo e o campo da realidade aqui é profundamente perturbado por imagens.
Podemos pensar que, na atualidade, há uma nova forma de histeria, marcada pelos efeitos da ciência sobre o corpo? Lacan (1977/1981) em uma conferência interroga:
Aonde foram parar as histéricas de antigamente, […] como Anna O., Emmy Von N […] que permitiram o nascimento da psicanálise? […] O que aconteceu com os antigos sintomas? A histeria não se terá deslocado no campo social? A maluquice psicanalítica não a teria substituído? (p. 1).
Logo cedo, Freud identificou que o pai era o parceiro da histérica. Nesse sentido, a histeria, desde Freud, é percebida como Dois: o sujeito histérico mais seu interpretante, que não é outro senão o Nome-do-Pai. Castro (2018) traz considerações interessantes para se pensar a histeria na atualidade. Para essa autora, o fato de a histérica hoje não tomar o pai como parceiro não significa que ela não faça algumas parcerias, assinalando que, na atualidade, o grande parceiro da histérica é a ciência. Aliás, não é à toa que Lacan aproximou o discurso da histérica do da ciência. Agora, não se trata mais do gozo da privação articulado com a fantasia de suprir a falta paterna, mas de fazer valer uma privação no real do corpo mediante, por exemplo, as cirurgias estéticas. A autora ainda enfatiza que o corpo histérico hoje não atualiza mais o sintoma de um outro corpo, como vimos Dora fazer com o pai, mas utiliza seu corpo inteiro para tentar atingir o corpo d’A mulher. Nessa direção, há uma nova versão da recusa do corpo. Trata-se na atualidade de um corpo que, deixando-se cortar pela ciência, faz a neurose adormecer. Uma histeria sem o Dois, sem o amor ao Pai, uma neurose sem Édipo.