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O delírio da tecnociência: um corpo sem substância1

Joe Webb - Selected collages - Placed
Joe Webb – Selected collages – Placed
Rogério de Andrade Barros
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e membro do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise (LAPPSI/UEFS).

Na clínica, testemunhamos diariamente diversos arranjos que o ser de fala inventa para poder manter unidos os registros real, imaginário e simbólico, podendo dar consistência ao seu corpo. É a partir dos efeitos do choque do significante sobre a carne que a fabricação do corpo não se permite pensar desarticulada da subjetividade de quem fala.

O corpo, ele não é dado pelo fato da biologia, neurologia ou genética. Para a psicanálise de orientação lacaniana, o corpo é o que o ser de fala adora, “porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora todo instante”, contudo, “não se evapora” (LACAN, 2007/ 1975-1976, p. 150). Mais ainda: um corpo goza de si, dando provas de que para além da ordem simbólica e da imagem que lhe permite um júbilo ortopédico (LACAN, 1998/1966a), há uma substância de gozo, da qual propriamente um tratamento analítico não deixa de mirar.

Em conferência realizada para médicos, intitulada originalmente de Psicanálise e Medicina, Lacan (2001/1966b) aborda a disjunção entre o gozo e saber, indicando que, mais além da cura para o seu sofrimento, aquilo que um paciente demanda ao seu médico aponta para uma falha epistemosomática. Isso implica dizer que a medicina pode até conhecer os limites do organismo e de suas funções, mas não é capaz de nomear o que um corpo quer.

O lugar do médico, engendrado pelo discurso da cientificidade, encontra um percalço, já que ele “é requerido em sua função de cientista fisiologista, mas […] está submetido ainda a outros chamados” (LACAN, 2001/1966b, p. 10). Para além da cura, evidenciamos um pedido de reconhecimento como doente. A despeito dos protocolos (BRIOLE, 2009), a fala do paciente dá a ver a dimensão do gozo trazido com o adoecimento e sua relação desarmônica com o corpo próprio. A sua conduta médica, ao considerar a subjetividade daquele que fala, baliza-se entre a demanda de doente e o gozo do corpo (VIEIRA, 2002).

Se uma orientação lacaniana se vale do corpo vivo, em que algo do gozo pode se aparelhar com a ordem simbólica e produzir a subjetividade, os avanços tecnocientíficos concebem a sua existência destituída de qualquer crença. Trata-se do reducionismo organicista do corpo, onde a mente se cerebraliza, e a experiência subjetiva se explica na atividade neuronal.

O discurso científico contemporâneo, especialmente na sua conjunção com o modo de produção capitalista (BRIOLE, 2013), se vale do pressuposto de um corpo mortificado, dessubjetivado. A sua produção de saber, pautada sob a noção de um sujeito universal, deixa de lado o modo como, a partir do laço possível, cada um, na sua particularidade sintomática, esquadrinha o estranho gozo do corpo através da palavra (MILLER, 2010).

A construção de cyborgs, como aponta Irizar (2016), homens maquinais, cuja memória é aquilo que o humaniza, nos mostra que o campo da linguagem, simbólica, dotada de mistério e equívoco, se pretende transcrever em biologia molecular, dessubstancializando o gozo do corpo, podendo ele mesmo ser recriado a despeito da vida. Podemos pensar que, na história e evolução das tecnociências, se, em um primeiro momento, foi preciso objetificar o corpo, transformando-o num receptáculo da enfermidade a ser observado, hoje, o corpo-espetáculo da medicina transmuta o visível, assumindo um formato virtual. Não se trata mais de um corpo esvaziado de gozo que se permite investigar sob a condição de estar morto, mas de um novo corpo, holográfico, que se pretende infinito, ao negar a morte. Vida que, aqui, equivale ao arquivamento cerebral, memória sináptica do que se pode reter da experiência, como se ela fosse independente do corpo.

“Adeus ao corpo”, como aponta Le Breton (2003), é o aceno futurista da nova realidade, cuja materialidade gozoza é superada pela virtualidade. A despeito do delírio das tecnociências em construir um super-humano, havendo, assim, superado a sua existência corporal, apartando para todo o sempre o gozo que é obstáculo ao controle, o ser do humano persiste às transformações, não desaparecendo. A despeito dos avanços científicos se pautarem no corpo como algo obsoleto, é dele e nele que o ser de fala experimenta a vida. Assim, se a condição humana é inseparável do corpo, ela é também indissociada do desejo, do simbólico, do gozo. “Se algum dia essa situação se modifica, então o humano”, de fato, “haverá sido superado” (IRIZAR, 2016, p. 61).


Referências
BRIOLE, G. La palavra, más allá de la protocolización. Colofon – Boletín de la Federación Internacional de Bibliotecas de la Orientación Lacaniana. n. 29, 2009.
BRIOLE, G. Um real para o século XXI. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 65. São Paulo: Edições Eolia: São Paulo, 2013.
IRIZAR, L. El cuerpo, extraño. Dos formas de entender el cuerpo: medicina y psicoanálisis. Bilbao: Ediciones Beta III Milenio, 2016.
LACAN, J. (1966a). O estádio do espelho como formador da função do eu. Em: Escritos. (V. Ribeiro, trad.; pp. 96-103). Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
LACAN, J. (1966b). O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana, 32:8-14, 2001.
LACAN, J. (1975-1976). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.
MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010.
VIEIRA, M. A. O lugar da psicanálise na medicina – introdução à uma conferência de Jacques Lacan. Cadernos do IPUB, vol. VIII, n. 21 (Ciência e saber no campo da saúde mental), pp. 115-114, 2002.

[1] Uma primeira versão desse trabalho foi apresentada oralmente na Conversação entre Núcleos, no âmbito do Curso Regular do Instituto de Psicanálise da Bahia, em 2019.
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