Wilker França Associado do IPB Esse texto é fruto de alguns questionamentos surgidos a partir…
O Instituto e o impossível de ensinar
Rogério Barros
Diretor Geral IPB, Membro da EBP/AMP
Frente ao impossível pandêmico que o contexto covid nos impõe, com medidas sanitárias de distanciamento, agitam-se os corpos com a emergência de um real que ganha o semblante de um vírus, cujas leis a ciência ainda pretende desvendar. Fomos, assim, acometidos por um real que se desaloja da natureza, aí mesmo onde o delírio da ciência em escrever as suas leis no campo da biologia fracassa. Multiplicam-se as vozes autoritárias do discurso científico já não tão acreditadas como outrora. O terraplanismo e a vacina que torna o sujeito comunista nos dão pistas de um certo desvario, organizado pela via da pura segregação, já profetizada por Lacan (1967/2003).
Novas e velhas construções sintomáticas, ora paranoicas, ora fóbicas, despontam como como soluções a este cenário incerto, podendo ser provisórias ou não. Não descartamos também as respostas de contágio histérico que inundam os nossos Whatsapps com Fake News.
Estamos em uma nova ordem simbólica, em que as normativas consagradas e organizadas através de um Nome do Pai simbólico, falocentrado, abrem caminho para novas elaborações e possibilidades. É especialmente nessa direção que caminha o último ensino de Lacan, como sinaliza Laurent (2007) em A sociedade do sintoma: ao fracasso do pai, inventar um pai que sirva.
O declínio do Nome-do-Pai simbólico acompanha a queda das grandes narrativas que estruturavam o campo social. Casamento, igreja, exercito, escola, universidade são alguns exemplos de instituições discursivas que passam por abalos estruturais significativos e que apresentam desafios para transmitir o seu saber, cuja finalidade é dar um tratamento ao gozo, favorecendo a construção de uma borda, contorno possível, litoral.
A nova diretoria do IPB se serve daquilo que aprendeu com a diretoria anterior, que na contingência da pandemia, sustentou o seu ensino de forma remota, reinventando as formas de laço pautadas na transmissão dos fundamentos da psicanálise de orientação lacaniana nessas novas trincheiras virtuais. Como aponta Gabriela Dargenton (2017), no seu texto Lalangue on-line, publicado na revista La cause do désir, número 97, a vida on-line nos permite captar as mudanças de lalíngua da civilização, que nos endereça a uma transformação profunda na própria psicanálise, nos apresentando novos signos e novas formas de laço. Reinventar o laço, então, é a nossa aposta.
Retomo o título da intervenção: O Instituto e o impossível de ensinar. Como é possível notar, utilizo o conectivo lógico matemático “e” que traz o sentido de simultaneidade, possibilidade de existência ao mesmo tempo. Esse conectivo difere de outro, “ou”, que conecta duas afirmações carregando o sentido de que pelo menos uma delas seja verdadeira. Apostamos, assim, na simultaneidade da existência IPB e do impossível de ensinar, sendo essa mesma a bússola que causa o nosso ensino.
O Instituto
Afinal, o que é o Instituto? Para responder a essa questão, precisamos retomar a fundação da Escola de Lacan.
No ato de fundação, Lacan (1964/2003), tão sozinho como sempre esteve em sua relação com a causa psicanalítica, dá as diretrizes da Escola Francesa de Psicanálise. Seu objetivo é reconduzir a práxis original e cortante inventada por Freud, garantindo o controle interno e externo por uma crítica assídua que denuncie os desvios e concessões que amorteceriam os efeitos desta invenção.
Com esse ato, estabelece três seções para o funcionamento da Escola: 1. A Seção de Psicanálise Pura, referente a práxis e doutrina da psicanálise propriamente dita, onde se incorporam as subseções Doutrina da psicanálise pura, Crítica interna de sua práxis de formação e a Supervisão. 2. Seção de Psicanálise Aplicada, que implica a extensão da terapêutica psicanalítica e sua aplicação a outros campos afins, como é o caso a clínica médica. 3. Seção de Recenseamento do Campo Freudiano, que faz a atualização dos princípios que a práxis analítica deve receber na tensão com o discurso científico, favorecendo, nessa articulação, a comunicação da psicanálise e a garantia da recepção de inspirações complementares que outros discursos possam oferecer.
O controle interno dos princípios da psicanálise na Escola é garantido pela primeira Seção, onde alojamos a formação do analista, a supervisão e a psicanálise didática. Por sua vez, as duas últimas seções inserem a Escola no campo da extensão, cujo controle externo se faz na proximidade com os outros discursos, e especialmente o científico, seja na sua aplicação terapêutica ou no ensino. Como afirma Bernardino Horne, consultor permanente do IPB, a extensão aponta para a intensão, ao passo que a intensão aponta para a extensão (RANGEL, 2014).
Na Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola, Lacan (1967/2003) é enfático ao indicar que o psicanalista só se autoriza a si mesmo. Isso implica dizer que não há um curso que certifique o seu ofício. Cabe a Escola garantir a sua formação, o que retroage no efeito de que o analista deva se tornar responsável pelo progresso da própria Escola. Lacan ainda sublinha a intensão como sendo a didática da formação do analista, que envolve a análise pessoal e supervisão, e a extensão como a função presentificadora da psicanálise no mundo.
Podemos destacar algumas investidas de Lacan no campo da extensão. Esse é o caso da fundação do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris-VIII, em 1968 e a anexação, feita por Miller, com o apoio de Lacan, da Seção Clínica, no ano de 1977, cujo objetivo era o estabelecimento de um ensino que pudesse corresponder a uma definição lacaniana da clínica. Desejava-se, assim, estabelecer conexões com os cursos e a prática de apresentação de enfermos dentro da universidade.
Em 1979, Lacan cria o Campo Freudiano, um espaço diferente daquele da instituição analítica e da universidade, para a difusão da psicanálise. Por último, temos a fundação, feita por Miller, do Instituto do Campo Freudiano em 1987, para desenvolver a tarefa de ensino e investigação da psicanálise, podendo leva-la a outros países. É nesse contexto que se insere o Instituto de Psicanálise da Bahia.
Como diferenciar, sob essas bases históricas, a Escola do Instituto?
A Escola mantém o objetivo proposto pela Seção da Psicanálise Pura. Nela, busca-se responder ao que é um psicanalista, contando com os dispositivos do cartel e do passe. A Escola é a instituição psicanalítica propriamente dita. Entretanto, a suposição de saber que sustenta o discurso analítico, ao qual a escola suporta, tende a fechar-se, se autodestruindo se não for confrontada com outros discursos, externamente.
O Instituto, então, assume a função de aguilhão da Escola, pautado no saber exposto, fazendo barra ao mortífero da suposição do saber. Como afirma Francisco Paes Barreto (2010), o Instituto é uma instituição parauniversitária que abrange as seções da Psicanálise Aplicada e do Rescenseamento do Campo Freudiano, propostas por Lacan no seu Ato de Fundação.
Miller (1998), em sua Tese sobre o Instituto do Campo Freudiano, indica que o saber exposto do Instituto faz barra ao saber suposto da Escola. No Instituto, prevalece a transferência de trabalho, ao passo em que na Escola, prevalece o trabalho da transferência. O Instituto volta-se, assim, ao matema, discurso sem palavras, para transmissão da psicanálise e seu ensino, nas letras que o rigor epistêmico, na sua proximidade com o discurso universitário, nos exige ao comunicar.
No Instituto, o saber está com o cargo de comando, assim como o é no discurso universitário. Isso implica que o saber predomina, o talento e o trabalho teórico, a competência intelectual e a pesquisa. Há no Instituto algo de atópico, já que, pelo ensino dos fundamentos da psicanálise de orientação lacaniana, ele tende a ser o mesmo em todo lugar do mundo. Nessa mirada, se a Escola se particulariza na tensão com o Outro social, esposando os contornos da cidade, região, país, o Instituto mantém-se como um matema, maneira que Lacan encontra para comunicar as bases da psicanálise sob fórmulas lógicas, ao modo da matemática.
Lembramos, porém, que o Instituto é parauniversitário. O seu prefixo “para”, indica uma aproximação, estar acerca de, não se confundindo com a universidade. Isso implica dizer que no Instituto, apesar do saber estar no comando, exposto nas transmissões dos ensinantes, há também espaço para o efeito de sujeito, que, ao investigar sobre um tema, também paga com a libra de carne do seu sintoma na construção daquilo pode transmitir. Assim, ao ensinar, estamos todos na posição de analisandos, já que o saber é furado e incompleto, dando provas de que a sua exposição supõe um sujeito que tenta transmitir.
Os cursos, a aplicação da psicanálise à terapêutica, a apresentação de casos clínicos, os núcleos de investigação, as conversações com o Outro social, são os meios basais através do qual o Instituto se faz vivo. Trata-se da extensão da intensão da psicanálise de orientação lacaniana, pela via do saber exposto e do percurso investigativo, não sem contar com o rigor epistêmico do retorno a Freud e Lacan em suas letras, onde encontramos os traços do esforço de comunicar algo do impossível que é, sempre, a experiência com o indizível traumático, real.
Impossível de ensinar
Educar, governar e psicanalisar são os ofícios impossíveis nomeados por Freud (1937/1996) em Análise terminável e interminável. Na sua virada epistemológica da década de 20, já tendo introduzido à sua teorização o mais além do princípio do prazer, o pai da psicanálise assinala que há sempre um resto pulsional que não atinge a satisfação, retornando. Com efeito, apresenta os limites desses ofícios frente a este resto, que está tanto na base da compulsão à repetição, quanto na inapreensão ou absorção do rochedo da castração. O sintoma persiste, apesar de analisado, e resta um saber fazer com ele, como nos indica Lacan, na sua releitura de Freud. Há um limite na homeostase simbólica, e isso se evidencia também no campo da educação.
Se Freud (1905/1976) nos apresenta nos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade que o investimento no mundo externo depende de uma latência da sexualidade, isso serve para ensinar que a base da educação se encontra articulada a pulsão epistemofílica. Ou seja, isso se educa à base de uma satisfação desviada, substitutiva, por isso, sempre parcial. Há uma sobra, resto imensurável que persiste, nos dando pistas de que há na pulsão um quanto sempre incivilizável.
Destaco, então, o possível, articulado a pulsão e seu circuito em Freud, e o impossível, articulado ao resto da operação simbólica que retorna, de onde, por exemplo, Freud depreende a necessidade de um analista retornar à análise, já tendo chegado ao seu fim, de tempos em tempos.
Retiro de Miller (2010), no seu curso Extimidade, uma passagem que nos serve para compreender o Campo Freudiano, onde se afiliam os diversos Institutos. Ele nos diz que a palavra campo faz referência a um campo de gravidade. Sobre o que orbita o Campo Freudiano? Em torno da Coisa freudiana.
Ao apresenta-lo desse modo, Miller indica que há aí uma relação não harmônica entre duas dimensões: o campo e a Coisa. A coisa é extima ao campo, apresentando-se fora. Entretanto, o neologismo extimidade indica também se tratar do mais íntimo posto fora, em alteridade. A existência da Coisa, nesse sentido, depende do campo, que lhe dá os limites conceituais, podendo disso extrair suas consequências, aproximando-a da comunicação e do ensino.
Isso faz ver o fundamento lacaniano da psicanálise, tal qual Lacan (1958/2003) formula em A psicanálise verdadeira, e a falsa. Ele diz: “a psicanálise verdadeira tem seu fundamento na relação do homem com sua fala” (p. 173), podendo ser extendida através da comunicação que tangencia, bordeia e faz círculos ao redor de um furo. O real, invenção lacaniana para abordar o impossível, também apresentado ao longo dos seus seminários, sob os axiomas “não há relação sexual”, “a mulher não existe”, “há Um”, ”Um pai”, nos faz ver a sua orientação ao real mudo, mas logicamente isolado na linguagem como indizível.
Será através da linguagem e da escritura possível que temos pistas do real: a linguagem nos permite, assim, “colocá-lo em questão” (Ibid., p. 178). Nessa direção, “nenhum ensino fala do que é a psicanálise” (LACAN, 1967/2003, p. 250), sendo ela mesma impossível de se enunciar, como pontua Lacan na Proposição de 9 de outubro.
Miller (2012) indica que o real é sem lei. Trata-se de uma fórmula contundente que indica que o real é impossível de apreender, a despeito do esforço de toda a ciência, sobretudo a ocidental, em diferenciar um eu cogniscente de um objeto passível de apreensão. O real do inconsciente evidencia justamente a cegueira irredutível do sujeito da ciência, cujas invenções não são mais que semblantes de real, simulacros que nos permitem crer no discurso universitário em conjunção com o discurso capitalista.
De que se trata o real na psicanálise?
Com Freud (1900/1969), o abordamos desde o umbigo do sonho. É o impossível de interpretar do Pai, não vês que estou queimando?, ou mesmo na fórmula da trimetilamina que se apresenta no sonho da injeção de Irmã, saindo de dentro da sua garganta, escrita para não ler. Sexualidade feminina e morte são destacadas por Freud como irrepresentáveis.
Com Lacan, o real encontra-se localizado em um impossível lógico, o que não cessa de não se escrever na experiência do sujeito que fala e goza de um corpo. Essa formulação, entretanto, se fez a partir dos caminhos pelos quais Lacan tenta incluir o real da psicanálise e seu modo de ensino no campo das ciências.
Tomo por referência o livro de Miquel Bassols (2015) intitulado A psicanálise, a ciência e o real. Ele nos indica que na década de 40, vemos Lacan pensar a psicanálise como uma ciência da subjetividade, ao lado das ciências sociais e da antropologia, posição que se modifica na década de 50, ao localizá-la como ciência conjectural, tentativa de romper com a divisão entre as ciências naturais e ciências humanas. A psicanálise se aproxima, nesse momento, das ciências da linguagem, período conhecido como estruturalista da psicanálise lacaniana.
Na década de 60, Lacan aproxima a psicanálise da lógica matemática, com o desejo de conceber uma ciência do real. Um desejo não tão diferente daquele de Freud na construção do Projeto para os neurologistas, abandonado posteriormente. Nesse momento, o matema é oferecido por Lacan como possibilidade de transmissão integral no ensino, ainda que dependa sempre do discurso e da língua partilhada para torná-lo efetivo. O matema é a idealização de um discurso sem palavras, que transmite algo com máxima redução do sentido, minimizando o mal-entendido da linguagem. Na década de 70, Lacan afirma mais seguramente que a psicanálise não é uma ciência, que se trata de uma escroqueria, uma tagarelice que traz efeitos. Como isso, recorre a topologia para alojar o real, impossível de apreender, que não pode ser evocado ou manejado senão através da ressonância, apartada por completo da semântica, mas manuseada nos nós, tranças, etc. Um esforço de poesia, um tratamento pelo significante que o aventa, sem lhe dar sentido.
Nesse pequeno grande esse percurso realizado, que vai do impossível de apreender do real, passando pelo esforço parauniversitário de ensiná-lo através dos matemas, renovo o nosso interesse pela causa que nos faz gravitar. O poder dos impossíveis, como nos indica Lacan (1969-1970/1992) no seminário 17, O avesso da psicanálise, longe de nos pregar na impotência frente o real em jogo, oxigena a transitividade que nos permite aludir, bordejar, inventar. Nesse ano de trabalho que se inicia, que possamos, com as nossas rodinhas de barbante, fazer costuras possíveis, que vivifiquem o nosso desejo.