Wilker França Associado do IPB Esse texto é fruto de alguns questionamentos surgidos a partir…
O caderno rosa de Lori Lamby e a letra como fixação de gozo pela via da escrita
Raquel Matias Correia Lima
Associada do Instituto de Psicanálise da Bahia
No livro de H. Hilst, composto pelo Caderno Rosa e o Caderno Negro (Hilda Hilst, 1990, O caderno rosa de Lori Lamby), temos a escrita de uma menina de oito anos, Lori, filha de um escritor, que diante da incapacidade deste em escrever um livro pornográfico, tomou para si tal faina, criando, então, uma narrativa onde a confluência entre o pueril e o pornográfico não encontraram limites, apenas visam ao gozo da escrita.
Lori (personagem do livro de Hilda) narra, em estilo de diário e com preciosismo de detalhes, uma história na qual é oferecida sexualmente, pelos pais, a um “tio”, em troca de dinheiro e presentes supérfluos.
É uma escrita que, por ser livre de censuras, deixa fluir o polimorfismo, ao passo que também funciona como uma tentativa de laço com seu mundo, no qual Lori habita e descreve em seu diário, como sendo permeado por adultos intelectuais e bastante ensimesmados, que enaltecem a capacidade humana de uma escrita original, mas que ao mesmo tempo, não parecem integrar a menina, deixando-a sempre como uma espectadora, que recebe pouco cuidado no que tange a preservá-la do que é tratado nas conversas adultas.
Lori, ao escrever um diário fictício¹, endereça aos pais tanto uma suposta solução para a impotência do pai, quanto uma questão acerca da sexualidade: Vale tudo pela literatura, esse território onde toda ficção pode ser narrada?
E ela própria, num segundo tempo, responde para si, quando n’O caderno negro, dirige-se ao editor do pai falando, entusiasmada, que tem muitas histórias infantis de sua autoria e que poderia escrever todo um caderno delas.
Este é um momento da obra em que Lori já se posiciona como autora e se mostra decidida a tomar a escrita como uma via de satisfação e sustentação de si como Um, uma vez que essa escrita, enquanto letra, não seria usada como semblant e estaria rompendo com a função de encobrimento, que é essência da ordem significante. Além disso, essa escrita de Lori rompe a cadeia significante do Outro. No caso dela, de um pai que repetidamente considerava literatura pornográfica como “porcaria e bandalheira”.
Lori, com essa ruptura, transforma a corda que poderia estrangulá-la subjetivamente, naquela que a amarra e nomeia como uma autora infantil de “bandalheiras”, cujo teor é marcado por uma escrita do non sense, do irrepresentável e impossível de se escrever. Ao mesmo tempo em que, ao fazer isso, não visa nenhum embate com os pais, o faz por pura satisfação, e também, por completo desconhecimento de qualquer impedimento para tanto. Faz o leitor crer que, percebe que ser uma escritora original é um lugar autorizado, independente do teor daquilo que escreve.
Lacan, no Seminário 23, pontua que o Nome-do-pai é o detentor de uma lei, a lei do amor. Lori, durante o empenho em escrever um livro pornográfico, endereçou-se tanto em nome de sua incógnita acerca da sexualidade e curiosidade sexual, quanto por tentar fazer um laço com essa insígnia paterna de amor absoluto à literatura.
O pai de Lori transmitiu esse amor à filha, contudo sua impotência, bem como (ao que se pode perceber, através do diário de Lori) sua sutil demissão, enquanto aquele que poderia exercer função de Nome-do-Pai, deixou a menina à mercê de uma carência simbólica que pudesse tanto inscrever uma questão mais elaborada acerca da sexualidade, bem como uma interdição acerca dos caminhos possíveis para acessar tal sexualidade.
Desta forma, Lori, ainda sem saber como, lança-se ao gozo pela escrita, uma herança paterna, mas executada de forma singular, desligada da problemática fálica.
No Seminário 10, Lacan compreende o Falo como um significante do gozo, ligado a detumescência do órgão sexual masculino, que Lori localiza como sendo a experiência do pai diante da exigência de escrever um livro pornográfico. Mas ela não se vê dentro dessa problemática fálica, pois como diz Lacan (1962-1963 / 2005) “à mulher nada falta” (p. 200), pois o sujeito feminino em relação à detumescência do órgão nada perde. Assim, Lori escreve O caderno rosa.
Contudo, na escrita d’O caderno Negro, Lori dá uma virada: a escrita é o falo por meio do qual ela se inscreve como Um, suportando a ausência de significação, não só sobre o que escreve, mas sobre si. Não há uma questão a ser respondida. Permite-se que a escrita opere na dissociação de seu corpo com seu ser, a escrita de uma menina de oito anos acerca de elementos pornográficos em narrativas pueris, ou seja, que não busca uma ancoragem no campo das representações, dos semblantes.
Seria desta forma, então, que Lori tomou a escrita como uma forma de sustentar-se enquanto Um? Criando um nome próprio para si, através do gozo pela via de uma escrita onde prevalecesse um fazer letra, o saber fazer com o real numa escrita que se reduz ao real da letra como sentido esvaziado, com S1s desencadeados, constituindo uma constelação de insígnias, signos do gozo?
1O Caderno Rosa de Lori Lamby é um diário cujo teor fictício só é revelado a posteriori, n’O Caderno Negro. O leitor percorre o livro sem saber se se trata de ficção ou se é autobiográfico, confirmando que se trata de uma ficção apenas quando inicia o anexo, que é O Caderno Negro. Além disso, é importante salientar que foi escolhido para o presente trabalho a interpretação de que os dois cadernos foram escritos por Lori, pois Alcir Pécora – estudioso da obra de Hilda Hilst – pontua que outra interpretação é de que os dois cadernos foram escritos pelo pai de Lori.