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Indespertável – O sonho de um dizer

Kazuhiko Nakamura . “Mechanical Silence”
Kazuhiko Nakamura . “Mechanical Silence”
Cassio Nery Dos Santos Ferreira
Núcleo de Investigação em Psicanálise na Atualidade (NIPA)

Éric Laurent (2019), no texto O despertar do sonho ou o esp d’um desp, traz uma questão para refletirmos: “o que há de novo na interpretação do sonho?” (s/p). Nessa perspectiva, ele afirma sobre os seus próprios sonhos que, “contrariamente aos de Freud, eles não são inspirados pelo desejo de dormir. É sobretudo o desejo de acordar que me agita” (s/p). O mesmo autor ainda cita Lacan (1972-1973/1985), no seminário 20, onde generaliza a ideia de compreender o sonho como um instrumento de despertar.

Nesse contexto, debruço-me sobre algo que me chamou a atenção na sonoridade da palavra “despertar”, atentando então para o significante “dizer”, o qual faço uma relação com o momento em que estamos vivendo, entrelaçando sonhar, despertar e o inesperado do real que surge com a pandemia. Desta maneira, algo despertou em mim o desejo de escrever e, nestas elucubrações, me deparei com outra questão: eu desperto? Foi através desse insight que comecei novamente a sonhar, agora, um novo sonho, neste instante, acordado!

Enquanto Freud em sua prática nos leva a considerar os fenômenos dos despertar no sonho, Lacan foi além e tentou nos despertar para outra coisa, que na verdade não deixamos de sonhar, mesmo quando acordamos, pois a realidade também é um sonho, e nós vivemos a sonhar. Logo, o despertar para Lacan é da ordem do real, do acaso, do inesperado, algo que acontece, mas logo se esvai, e por isso algumas de suas afirmações são citadas no texto de Laurent (2019) como: “despertamo-nos para continuar a sonhar”; “nunca nos despertamos”, para nos fazer sonhar ainda mais, porém, acordados.

Portanto, se o real é o verdadeiro despertar, podemos falar que esse encontro com o despertar é parcial, ocasional, mas que também desperta para novos sonhos, visto que eles acontecem quando a barreira do sentido é transposta. Então, sonhar está para além do dormir ou acordar. O sonhar é um despertar que desperta para novos sonhos.

Para Laurent (2019), “é despertar tudo o que é ultrapassagem, alteração, dano à homeostase do princípio do prazer que garante a vida” (s/p) e este é também o princípio do sentido. Podemos pensar nos cortes nas sessões, nas catástrofes, nos eventos inesperados que acontecem em nossas vidas, as contingências, como despertares parciais. O que todos eles têm em comum? A quebra do sentido, o furo na cadeia significante de cada sujeito, a divisão subjetiva daquele que antes estava em harmonia.

Assim, a pandemia em que vivemos atualmente traz à tona esse encontro com o real de cada um, diante de um inimigo invisível, de uma ameaça ao equilíbrio, de um não saber, de algo que barra o prazer, aquilo que não tem sentido algum, mas que está acontecendo. Em muitos, desperta o novo, mudanças no modo de comer, de agir, de pensar, de se relacionar, enfim, algo que faz com que o sujeito caia da realidade ao tropeçar no real, podendo assim, também, inventar novas maneiras de sonhar novos sonhos, responsabilizando-se por suas escolhas.

E se não há tempo certo para se despertar – se é que se consegue isso -, o tempo verbal aqui também não importa. Logo, trago a vocês a minha questão inicial e a devolvo para que se perguntem: eu desperto? De esperto, nada tenho, mas ao dizer isso e me escutar, algo tocou, despertou. O significante “despertar” em nossa língua tem um som especial, pelo menos que me chamou a atenção, além da associação ao verbo “dizer”.

Quando se conjuga o verbo na primeira pessoa do singular, o sujeito fala: eu desperto, no entanto, o som é de um “eu disperto”, um “eu-diz-perto”, um eu que diz perto, um dizer próximo de algo, uma fala que se aproxima daquilo que se quer falar, mas que não se consegue, pois, como sabemos, não se pode falar tudo: o real é indizível. Na análise, esses despertares podem ser observados tanto nos efeitos terapêuticos, quanto em retificações subjetivas, quando os analisantes passam a ter insigths, mudando o discurso. É quando conseguem se escutar melhor, ou seja, dizer-perto, também é dizer para si, se escutar, despertar, diz-pertar!

Nesse sentido, despertar é uma forma de se aproximar do real, deixando por alguns instantes o gozo da realidade, do princípio do prazer, é dizer até aqui, até certo ponto, até onde se encontra sentido. Então, esse despertar, como diz Laurent (2019) é parcial, para continuarmos a sonhar o sonho da realidade. Pois o real é indizível, assustador, e para muitos, um pesadelo.

Ao invés de dizer sobre o sonho, deixo algo que me fez questão e que pode fazer um paralelo com o impossível do real, a ideia do sonho-de-um-dizer! O sujeito desperta, parcialmente, mas, é preciso dormir, sonhar, fantasiar e, assim, a cor dar à própria vida.

Estaríamos, então, vivendo o sonho-de-um-dizer? Um indespertável? Às vezes, nos assustamos com uma contingência. Despertamos, mas logo voltamos a dormir e sonhar, a tentar dizer. E talvez nunca digamos.


Referências
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, Livro 20: Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LAURENT, É. (2019). O despertar do sonho ou o esp d’um desp. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/19-09-11_el-despertar-del-sueno-o-el-esp-de-un-sue.html. Acesso em 03 out. 2020.
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