Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
A prática feita por muitos: a experiência em um Hospital-dia de adolescentes em Aubervilliers / França
Carla Almeida Capanema
Psicanalista e Pós-Doutora em Estudos Psicanalíticos (UFMG)
Este texto abordará a experiência vivenciada no campo de um estágio Pós-Doutoral realizado no Hôpital de Jour Clos Bénard – Unité adolescents na cidade de Aubervilliers/França no ano de 2020, em um serviço de referência no atendimento a adolescentes psicóticos e autistas e que faz parte da Rede Internacional do Campo Freudiano R13, composta de Instituições que abordam o trabalho sobre o princípio: “a cada criança, uma instituição”.
Segundo Yves-Claude Stavy (2001), a Unidade para Adolescentes do Hospital de Aubervilliers, criada nos anos 90, tinha em seu início influências da psicoterapia institucional. As equipes apostavam na diversidade de ateliers, propondo uma alternativa à clínica psiquiátrica tradicional. Mas diante do real da clínica a angústia ganhava espaço nesta unidade, até que alguns profissionais decidiram fazer a escolha de se orientarem em sua prática cotidiana pela psicanálise de Freud a Lacan. Como uma onda, alguma coisa do desejo singular se propagou, deixando entrever que cernir o insuportável de cada caso tinha um efeito vivificante, não somente para o sujeito, mas também para a equipe. E que essa experiência implicava num risco e em um engajamento lado a lado daqueles que, muitas vezes, são deixados à distância. Desde então, a unidade para adolescentes se tornou uma referência nacional e internacional no trabalho com sujeitos autistas e psicóticos ancorado por um projeto clínico.
“Permanecer dócil às exigências do caso”
De acordo com Yves-Claude Stavy (2003) J-A Miller encontrou um termo que, rapidamente, alcançou um grande sucesso: “a prática feita por muitos”[1], a fim de fazer valer a prática orientada pela psicanálise nas instituições membros do R13. Essa “prática feita por muitos” não deve ser confundida com um “autismo feito por muitos”, mesmo que o projeto clínico de uma instituição consista, sobretudo, em tentar esquecer a instituição em consideração ao caso. Aqueles que intervêm em uma instituição devem estar prontos a acolher as invenções de cada sujeito, “mas não se trata de apoiar; não importa o que, não importa como” (p. 1). Há uma regra necessária: não se diz sim a tudo, mas somente ao que pode vir a capitonear um momento da história do adolescente. Assim, o lugar essencial do dispositivo institucional passa a ser a reunião clínica.
Apostar no sujeito não consiste, de modo algum, a opor sintoma e estrutura, mas a subordinar as questões de estrutura às questões do sintoma. Para se permanecer dócil às exigências do caso, às exigências subjetivas dos adolescentes atendidos em Aubervilliers, é necessário como nos ensina Di Ciacca: “comutar seu funcionamento não a partir das exigências dos especialistas, mas a partir das exigências do sujeito na sua relação ao campo da palavra e da linguagem” (Stavy, 2003 apud Di Ciacca, 1999, p. 5).
O projeto clínico
Existem três eixos principais no projeto clínico do Hospital-dia para adolescentes de Aubervilliers: a Secretaria de Acolhimento, a Vida na Instituição e os Ateliers. Todo o trabalho tem como ponto de sustentação a aposta no cálculo das intervenções, no caso a caso, durante as reuniões clínicas.
a) A Secretaria de Acolhimento
A constituição de um acolhimento decidido pode favorecer um encontro original de cada adolescente com o serviço desde sua chegada. O comitê de acolhimento é constituído de um adolescente (que tenha uma questão com a ética da instituição) e um educador. Essa função é permutativa de 6 em 6 meses. Seu papel é apresentar a instituição ao adolescente que acaba de chegar, seus lugares, as atividades que são organizadas, os responsáveis pelas atividades.
Esse acolhimento tem como objetivo propiciar que cada adolescente possa encontrar ou inventar uma atividade dentro do serviço. As atividades não têm o propósito de que o adolescente possa “falar de si” ou de “enganar o tédio”, mas de fazer com que cada adolescente faça de seu sintoma uma chave para entrar no coletivo.
Mas a decisão em participar dos ateliers deve ser ela mesma uma contingência, não devendo ser banalizada. A participação do adolescente na vida institucional não é um imperativo e tal decisão deve ser endereçada pelo adolescente ao responsável pelo atelier, apresentando o seu argumento. O responsável pelo atelier – uma espécie de passador – assume um papel de acusar recepção da demanda e transmitir para a equipe técnica, que discutirá nas reuniões clínicas a inclusão ou não do adolescente em determinada atividade, levando-se em conta a seguinte questão: o pedido do adolescente pode ou não contribuir para uma invenção de um saber fazer com a dificuldade encontrada.
b) A Vida na Instituição
As ocasiões de participação no cotidiano da instituição não faltam: o ato de se colocar e tirar à mesa durante as refeições, a confecção do menu do dia seguinte, não deixar o lugar insalubre ao fim do dia. Um mural também é constantemente utilizado por todos – adolescentes e técnicos – para o planejamento do dia, oficinas, cardápio, presenças e ausências, biblioteca, eventos na instituição e no mundo, etc. Ao redor dessas pequenas atividades se aposta na contingência, para que o adolescente possa se inscrever em um laço social, mas não sem que ele possa se deparar com a complexidade das tarefas que se deve passar para se obter o que deseja.
c) Os “Ateliers”
Numerosos na origem da Unidade-dia para adolescentes, os ateliers hoje ocupam um outro lugar. Eles são constituídos por atividades propícias para que um adolescente “faça algo com seu sintoma”, onde o sujeito terá a chance de encontrar um lugar onde possa elaborar um objeto, onde possa investir em um saber. Os ateliers podem ser propostos por qualquer membro da equipe e todas as propostas são discutidas nas reuniões clínicas.
As Reuniões Clínicas como ponto nodal
Estas reuniões não são apenas tempos de transmissões, onde cada um testemunha sua aposta no caso. Mas segundo Stavy (2003), citando Alexandre Stevens (1998, p. 11), elas devem permitir aos técnicos precisar o cálculo de suas intervenções no caso a caso, ou seja, dar todo valor para o “point de capiton” encontrado por um adolescente. Pode-se sustentar uma invenção deste jovem ou, ao contrário, considerá-la como algo não favorável ao caso, ou ainda, limitar o seu escopo. Esses cálculos retornam para toda a equipe, que em seguida os coloca em ação junto aos adolescentes por eles assistidos.
Em função do Projeto Clínico Institucional são realizadas quatro tipos de reuniões clínicas com a finalidade de se fazer valer a “prática feita por muitos”.
– Reuniões cotidianas: acontecem no fim de cada dia de atendimento, permitindo a cada membro da equipe transmitir um ponto de impasse e, também, de avanço em encontros pessoais com um adolescente. Ele permite, assim, colocar em ato “o lugar que ocupa a instituição para cada sujeito e a resposta a ser fornecida” (STAVY, 2003, p.7).
– Reuniões semanais: a partir das reuniões cotidianas, um educador apresenta o seu trabalho ao redor de um caso a cada semana. Os outros educadores, em seguida, apresentam suas próprias impressões. Então se desenvolve um debate onde se decide uma estratégia em função do tempo lógico do caso – a tática se casando com a singularidade do caso. Espera-se que nenhum adolescente seja deixado de lado: tendo em vista o número de adolescentes acolhidos, sendo cada caso abordado uma vez por trimestre.
– Reuniões mensais: cada primeira terça-feira do mês acontece uma reunião clínica com outras unidades hospitalares, permitindo descompletar cada estrutura do Hospital. Discute-se um caso a partir da exposição de um técnico. Um debate se faz com os outros técnicos da unidade, mas também com outros colegas de outras unidades. Este trabalho em comum é uma aposta em favor da transmissão e do debate contra um “autismo de vários”. Esta reunião mensal é uma maneira de enodar as diferentes unidades do Hospital: unidades orientadas pela preocupação de cernir o mais singular do caso, independente de sua estrutura e a idade dos pacientes.
– Reuniões anuais: são reuniões de jornadas de encontros nacionais e internacionais orientadas pelo Campo Freudiano, Jornadas da Escola da Causa Freudiana, da Associação Mundial de Psicanálise ou, ainda, Encontros de Jornadas de Estudos suscitadas e organizadas pelo próprio serviço, que permitem o debate mais aberto sem ceder ao rigor do que é exposto. Estas reuniões objetivam fazer valer o que pode ser feito na “prática feita por muitos”, para além dos protocolos, das estatísticas e das ações preventivas.
Deste modo, este texto busca evidenciar o lugar primordial das reuniões clínicas realizadas no Hospital de Aubervilliers, onde se nota uma aposta de transmissão a partir da construção do caso clínico feito por muitos. Destaca-se, em particular, a importância das reuniões diárias, galgadas na discussão dos eventos ocorridos com cada adolescente durante a sua permanência ao longo de todo aquele dia. Procura-se, assim, estabelecer direções para os casos ali atendidos, por meio de invenções próprias que cada adolescente traz frente às angústias por eles vivenciadas, a partir das contingências surgidas no seu dia-a-dia.
Já as reuniões semanais e mensais permitem as validações dos casos de modo ampliado, a partir de propostas delineadas por eixos de trabalho individualizados a serem executados por toda a equipe.
Visando ilustrar esta proposta de intervenção desenvolvida no Hospital-dia da cidade de Aubervilliers será abordado, a seguir, uma vinheta de construção clínica pelo viés da “prática feita por muitos’’, tendo a contingência funcionado como algo propiciador de um novo laço social.
Durante a realização de uma reunião diária, fora discutido um acontecimento súbito observado pela equipe no atelier de modelagem: a posse, por parte de uma adolescente, de um caderno semelhante ao de sua analista, sendo tal objeto utilizado por ela como uma espécie de diário, se propondo a registrar ali, de modo compulsivo, sua rotina ao longo de toda aquela tarde.
Esse ato da escrita despertou na jovem algo de novo, cunhado por uma necessidade de se registrar sua rotina. Ela se mostrou muito investida neste trabalho, marcado por uma escrita sem limites ou bordas, sendo difícil de dissuadí-la de tal tarefa para participar das atividades propostas no atelier.
A equipe “acusou recebimento” deste novo objeto – o caderno – propiciando a discussão deste caso na reunião clínica. Decidiu-se pelo acompanhamento da adolescente neste trabalho de escrita, com a proposta de “historicizar” suas experiências e tentar limitar seus textos, cuidando para que esse não fosse um trabalho exaustivo e interminável.
No início a escrita era marcada por uma forma de apresentação caótica, que ultrapassava as margens do caderno e com um imperativo de se passar a limpo todos os erros ora cometidos pela jovem. Aos poucos, com o acompanhamento de um estagiário, ela passou a ordenar melhor o seu texto, demonstrando preocupação com a forma da escrita e com o bem escrever.
Nota-se que essa invenção possibilitou um apaziguamento na sua angústia, permitindo a ela localizar-se simbolicamente no tempo e espaço. Também possibilitou um certo “véu” imaginário ao significante foracluído – era um cahier (caderno) que comportava um segredo, sendo compartilhado apenas com algumas pessoas, possibilitando a sua inscrição na forma de um enlaçamento social com um Outro menos invasivo.
Se anteriormente ela apresentava o comportamento bizarro de olhar para todos da equipe de cabeça para baixo, indicando uma perturbação do objeto olhar – ela olhava e era olhada pelo outro estranhamente – agora ela pôde fazer uma amarração dos registros RSI pela escrita do seu cahier, colocando um véu ao mar aberto do gozo do Outro.
O trabalho desenvolvido na Unidade-dia para adolescentes de Aubervilliers reforça a aposta sobre o sujeito, mesmo ante ao menor índice de inscrição em um laço social. Como nos ensina Stavy (2003, p.1) trata-se de um ato de fé: ˝Fazer reconhecimento de um pequeno nada produzido pelo sujeito já é contar, por antecipação, com um sintoma que seja equivalente a um laço social”.