Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
A LOCALIZAÇÃO DA POSIÇÃO DE GOZO
Sílvia Gusmão
Associada da ACPPE[1]
Ao longo do ensino de Lacan, o simbólico foi perdendo sua primazia em benefício de uma clínica orientada ao real. O sentido, o significante e o saber[2] são rebaixados no último ensino, e o desejo do analista, a partir de então, é se aproximar o mais possível do real de cada sujeito, saber de sua posição de gozo à medida que sua localização norteia o analista na direção da cura.
Contudo, não se consegue acessar o real diretamente, apenas seus indícios. O real não se nomeia, não se escreve, tampouco faz laço. Ele é irrepresentável, impossível, inerte.[3] Não há saber no real, nem há relação sexual. O real é sem lei, não conhece o ser; ele apenas existe. O que não quer dizer que é sem causa. O real tem uma causa que é a conjunção do Um e do gozo.
Em O ser e o um,[4] Miller afirma que essa conexão entre o Um e o gozo tem sua raiz na fixação. Em Freud, a parada da pulsão em um ponto fixo é o fundamento do recalcamento original. Essa fixação da pulsão marca a existência do Um de gozo.
No seu último ensino, Lacan se dedica às consequências da afirmação da existência do Há-um (Yad´lun). No Seminário 19, diz textualmente sobre o campo Uniano: “O que só existe ao não ser: é exatamente disso que se trata, e foi o que quis inaugurar hoje no capítulo geral do Uniano” (LACAN, 2012, p.131). O Há-um é puro gozo. Trata-se de um significante que, ao incorporar-se, muta o corpo biológico em gozo, deixando de ser para existir e depois voltar a ser significante.[5] Esse encontro do significante com a carne viva, Lacan denomina troumatisme.
É um encontro traumático porque perturba o corpo biológico que está estabilizado, produzindo efeitos. Esse gozo inaugural é sempre ligado a um primeiro acontecimento da ordem da contingência. Todos os significantes que vêm depois, têm algo dessa primeira marca que tende a se repetir.
Segundo Horne,[6] o Uniano ocorre em dois tempos. O primeiro é o da incorporação, o Um da pura existência, da substância gozosa. É o tempo da 1ª escritura, da marca que vai escrever-se no corpo, produzindo ressonâncias. Essa escritura pura é desarticulada da fala, portanto, do sentido. Miller diz que “é puro traço do escrito, um desenho. Um nó borromeano, representado, desenhado, é dessa ordem”[7](MILLER, 2013, p.16). Para Lacan, o nó borromeano é o real.
Em um segundo tempo, trata-se do significante do Um sozinho. Momento de lalíngua, em que o significante faz furo na substância gozante e o simbólico retoma seu poder. Esses S1s são significantes que produzem gozo, relacionados por Lacan à imagem da chuva caindo das nuvens, abrindo sulcos. É uma escritura ligada à palavra, à fala, à voz, com suas entonações e modulações. Aqui, trata-se do simbólico no real.
Na etapa seguinte, temos a letra de gozo. No Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante, na lição sobre Lituraterre, Lacan (1971/2009) propôs a letra como literal fundado no litoral entre o gozo veiculado na cadeia significante – gozo fálico – e o gozo impossível de saber. Nessa perspectiva, a letra tem um pé em lalíngua e outro na linguagem.
Na clínica, a repetição da marca inaugural aparece nas ressonâncias que ecoam no corpo e na iteratividade do Um de gozo que se repete. Esse é o ponto de trauma; onde se goza. O analista, na experiência analítica, vai cercando o ponto de gozo, fazendo o sujeito se confrontar com o que de seu gozo não faz sentido, com o que resta mais além da queda do objeto a, com o Um de gozo que “aparece no fazer do sujeito, na repetição, no seu modo de vida” (GONÇALVES, 2008, p.171).
Estamos num nível que difere do inconsciente[8]. O Um de gozo proposto na orientação para o singular, é um gozo que não se resolve na significação fálica, conservando uma opacidade fundamental. Isso tem consequências para a prática, em particular sobre a interpretação, diz Miller. Para Freud, o inconsciente é redutível completamente ao saber e a interpretação, consequentemente, trata de decifrá-lo. Contudo, o saber está excluído do acontecimento. Desse modo, a decifração se interrompe no fora de sentido do gozo e que, ao lado inconsciente, onde Isso fala, há o núcleo do gozo opaco, onde Isso não fala a ninguém. Não esqueçamos que gozo é pulsão, e pulsão não quer dizer nada. Só se dispõe a gozar de seu vai-e-vem.
Para se ter acesso à posição de gozo, Miller propõe a leitura, não apenas a escuta.[9] Há uma distância entre leitura e escuta. O que escutamos são significações que evocam a compreensão. A escrita relaciona-se com o que marca o corpo. A escuta parte do significado; a leitura do significante. O significante vem primeiro e pode-se ler. Ler o que se ouve supõe reduzir a linguagem à sua materialidade significante – à letra, ao sem sentido. A interpretação dirige-se ao dizer, às formas de dizer que revelam a posição de gozo do sujeito.
Para finalizar, Miller afirma que para se tocar na ordem do Um, é preciso passar pela narrativa e pelo Édipo. Não se consegue chegar diretamente às marcas que ressoam no corpo. O que está escrito não se pode nomear. No entanto, é possível a partir de uma análise significantizar esse real.[10]