Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
E se não tivesse o amor… e se não tivesse o (a)galma
Graziela Vasconcelos
Associada do Instituto de Psicanálise da Bahia
É de traços, pedaços e fragmentos que se faz possível esse pequeno texto. Que algo arrebata e em razão de haver uma falta, se pode operar os efeitos de um agalma. Objeto (a)galma, ele, que apesar de dizer de uma falta, nunca falta, não neste lugar, onde, à primeira vista, o amor se instaura.
Sobre isso, sobre esses objetos agalmata, quem tão precisamente nos fala, em seu encômio à Sócrates, é Alcibíades. Em O Banquete, de Platão (2021), Alcibíades descreve, e de maneira topológica, algo do ser de Sócrates que é a razão mesma de seu arrebatamento. Ao tomar o sileno como imagem com a qual irá comparar Sócrates, Alcibíades coloca em jogo um dentro e um fora. Uma preciosa indicação topológica. Ele não despreza, tampouco nega o fora representado pela aparência de Sócrates, mas é no dentro, no interior, que Alcibíades nos faz ver que está a verdadeira preciosidade, o objeto que arrebata.
“Ignoro se alguém […] viu as estatuetas no seu interior…, mas eu as vi um dia, e as achei tão divinas e áureas, tão perfeitamente belas e admiráveis que simplesmente vi-me na situação de fazer como ele me instruía” (p.84). Arrebatado pelo que, ao contemplar Sócrates pela primeira vez, Alcibíades descortina, ele condensa, nesse trecho, os surpreendentes efeitos dos agalmata. Sobre o que, aqui, está em questão, Barthes tem algo a nos dizer e Lacan, precisamente, tem algo a nos fazer ver.
Lacan (1960/1961), coloca em relevo, dentre outros, um valiosíssimo aspecto do agalma, esse que vai mais além de um objeto ornamental com a função de enfeitar e se apresenta como uma joia, um objeto precioso, o que se destaca é seu poder subversivo. Aquele que porta os agalmata é aquele que comanda, que ordena e a quem aquele que é arrebatado torna-se submisso. Isso por si só já nos permite ver toda uma formulação lacaniana em torno da constituição do sujeito, da submissão ao Outro e de um objeto que é em verdade parcial. Lacan mesmo destaca e aproxima o aspecto mágico do agalma à magia da questão essencial que coloca o sujeito, Che voui?
Em Fragmentos de um discurso amoroso, Barthes (2018) nos apresenta a ideia do mito moderno de um rapto amoroso, uma construção que parece dialogar com Lacan em sua ideia de poder subversivo do agalma, ele vai nos dizer: “o arrebatador não quer nada, não faz nada; ele fica imóvel (como uma imagem), e é o objeto arrebatado que é o verdadeiro sujeito do rapto, o objeto da captura se torna sujeito do amor” (p.45), sujeito precisamente por sua posição de assujeitado à ordem daquele que porta o agalma. Barthes nos diz ainda que o amor à primeira vista é uma hipnose e que o que fascina é uma imagem, como vemos bem narrar Alcibíades ao dizer de seu encontro com o que há no interior de Sócrates.
Agalma, um objeto que não se pode precisar e que se apresenta enquanto um traço, um pedaço, que carrega escondido mais do que se pensar ser e cuja função, Lacan vai chamar de objeto parcial. No Banquete, Platão nos apresenta de forma tão lindamente clara o que Lacan nos explica: que não se trata de equivalência, de tomar todo o outro por objeto do desejo, senão de que esse objeto encarna algo, alguma coisa que o distingue dos demais e que o faz ser então aquele do enlace amoroso, não por sua totalidade, mas por esse ponto visado pelo desejo como tal. O objeto localizado em Sócrates é, na verdade, pertencente à Alcebíades. Miller (2020) nos diz desse objeto enquanto aquilo que cai quando a coisa é absorvida no Outro, “o objeto a está contido no Outro” (pag. 67). Ele nos diz ainda que o objeto a o sujeito o tem, mas não à sua disposição e nem sua propriedade, por isso o tem e não o tem e que esse paradoxo carrega a definição do amor em Lacan, dar o que não se tem.
Por haver agalma, o que faz Alcibíades em seu encômio é lançar um apelo, uma demanda de amor à Sócrates, uma demanda que produz desejo. Ao final do seu elogio à Sócrates este “interpreta”: “julgas que deves manter-me a te amar com exclusividade e Agaton como objeto exclusivo de seu amor” (p.93). Ou seja, se oferece como amado (érôménos), demanda de Sócrates o seu amor, seu agalma, para assim se dirigir enquanto amante (erastes) à Agaton. Sobre as coisas do amor, Sócrates sabe e é porque ele sabe que não ama. Afinal, é o não-saber que produz as condições para o amor. Sócrates sabe que não há nada nele que justifique ser digno de ser amado ou desejado por Alcebíades. Se Sócrates não se coloca no lugar de érôménos, não se pode produzir aí a metáfora do amor, há, portanto, uma impossibilidade de surgir um érastès (amante) ali onde estava o érôménos.
O que se observa é que o agalma mantém, ao mesmo tempo, certa proximidade e distância do sujeito desejante. Uma proximidade mais da ordem do Imaginário do sujeito, naquilo que o objeto traz de aprisionante, de arrebatador e uma distância que aponta para algo impossível de simbolizar, o Real. O agalma permite então uma aproximação ao que é distante por ser inapreensível.