Lapsus, a-mostra… sua causa Pablo Sauce “Membro da EBP/AMP Caros leitores, Os aguarda neste número…
O desejo, ainda hoje?
Glauco de Carvalho Morais
Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)
A sociedade contemporânea, colapsada pelo imperativo categórico Goza!, reflexo do declínio de norte fálico que regula o curso do desejo, compreende o homem hipermoderno como desbussolado, regido pela satisfação pulsional aos objetos de consumo que, em busca de um gozo cada vez mais autoerótico e indiferente aos próprios objetos, marca a evanescência do desejo e suas impossibilidades de dar corpo a ele.
O axioma: “não existe relação sexual” (LACAN, 1972-73/2003, p.23), parte da conjectura que a constituição do sujeito é faltante, que a incompletude é uma condição estrutural. Antecedendo esse axioma e seguindo para uma articulação possível perante essa condição do sujeito, Lacan estabeleceu quatro discursos – modalizáveis em suas disposições – que organizariam as relações entre sujeito, Outro, saber e objeto. O princípio de todo discurso ou laço social é a articulação do campo do sujeito com o campo do Outro, no qual se faz presente a falta, a incompletude e consequentemente o desejo.
O desejo, que na perspectiva lacaniana do primeiro ensino está relacionado à falta, nasce da fenda que se abre entre o prazer que se busca e o que se encontra. Diferentemente da necessidade que encontra satisfação no objeto concreto e da demanda que se articula em palavras além do objeto, o desejo é irredutível à demanda, ele não se articula em palavras. O desejo é uma co-extensão da falta, só se deseja porque não se tem…
No Seminário 17 – O avesso da psicanálise, Lacan (1969-70/1992) menciona uma “mutação capital […] que confere ao Discurso do Mestre seu estilo capitalista”. Uma subversão no matema entre o significante e o sujeito, será suficiente para constituir o que ele denominará, em Televisão (LACAN, 1974/2003, p.48) Discurso do Capitalista – nesse discurso, o sujeito não se dirige a um Outro – como nos demais – mas ao objeto. Nessa nova forma de laço, a relação com o objeto é privilegiada e promissora, pois extinguiria o mal-estar e faria existir a hipotética completude – a relação sexual. No matema observamos que os objetos mais-de gozar (a) vêm no lugar da produção e, com um frágil anteparo da lógica significante (S1 -> S2), deixa o sujeito à mercê dos objetos ($ <- a). Isso indica que todo discurso que é conectado no capitalismo, deixa de lado as coisas da falta, do amor.
O gozo é do corpo próprio, o desejo é do sujeito – efeito da articulação significante resultante da submissão à linguagem e só pode aparecer metonimicamente, visto que não tem objeto próprio.
O não consentimento à falta-a-ser, a busca constante pela completude – que é sempre hipotética – força o Parlêtre a um dever que consiste em obedecer à exigência superegoica: “Goza!”, comum no contemporâneo – reflexo dos avanços tecnológicos e científicos – que possibilita o consumo desenfreado e pode ser lido como um empuxo ao gozo – com ou sem o Outro.
Se por um lado, com a ação da linguagem sobre o corpo, da entrada no campo do Outro, perde-se o acesso direto ao gozo, responder ao imperativo categórico: Goza!, de forma incessante e desenfreada é uma das tentativas de acesso a esse estado primário e inacessível; por outro lado, ser falante exige o desejo para constituir-se, consentir à falta-a-ser…
Como o paradoxo na história de Lewis Carroll (1865/1998), quando Alice perguntou ao Gato de Cheshire se ele poderia dizer qual caminho ela deveria tomar; frente a falta de clareza de Alice para onde gostaria de ir, o gato disse: “Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve!”. Ao que modulamos como exemplo é a implicação numa dialética, onde: ou deverá adentrar a lógica da injunção superegóica, ou a lógica do desejo; nesta última, quando há ressonâncias do dito sob transferência, instaura-se aí um possível corte que pode produzir uma nova direção a partir dos caminhos do desejo autêntico, singular.
As tentativas do sujeito contemporâneo em estreitar seus laços com o objeto, retirando da cena o Outro são inúmeras, mas o gozo sem o Outro é devastador e mortífero, há que se ter desejo, isto é, o furo – cavado pelo desejo do analista.
Enquanto localizado no corpo, o gozo só poderá encontrar o desejo se passar pelo campo do Outro, já que: “O que vem em suplência à relação sexual é precisamente o amor,” (LACAN, 1972-73/2003, p.62) o amor de transferência, o mesmo amor que permite ao gozo, condescender ao desejo (LACAN, 1962-63/2005, p.197).