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Restar o sonho

Daniela Lima de Almeida
Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB).
Aluna do curso de Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana (TPOL – IPB)
 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia (PPGPSI-UFBA)

O meu sonho, adormecido ou acordado, é esse trabalho,
mas é o trabalho que me trabalha.
(Maria Gabriela Llansol, O Texto-Catarina)

“O resto é sempre, no destino humano, fecundo”, nos diz Lacan (2008 [1964], p. 134) no Seminário 11. A psicanálise sempre se ocupou dos restos. Podemos dizer que um resto é o que possibilita seu nascimento e sua renovação. O sonho, que em algumas matrizes discursivas ocupava o lugar de gari da mente ou de pura atividade cerebral, é resgatado por Freud (2019 [1900]), que lhe confere um outro estatuto. Ao fundar um novo campo, Freud chama atenção para a cena inconsciente que, com seu modo próprio de funcionamento, faz do sonho uma realização de desejo sexual infantil e recalcado. À época do corte epistemológico inaugural, Freud inclui o sonhador como intérprete da própria formação onírica, cuja interpretação consistia em um trabalho de decifração. Por sua vez, Lacan opera uma dessubstancialização do inconsciente e situa a realidade humana a partir de três registros psíquicos: o real, o simbólico e o imaginário. Nessa direção, é possível interrogar: qual o estatuto do sonho após o corte epistemológico lacaniano?

Para começar, vale resgatar a reverberação de uma equivocidade no título freudiano Die Traumdeutung, A interpretação do sonho: ao mesmo tempo em que remete a interpretar o sonho, nos diz também do sonho como intérprete, como afirma Assef (2020). O sonho é situado por Lacan (2010 [1960-1]), no Seminário 8¸ no campo de errância do significante. Significantes dispostos a desvios. Vagantes. Entre dissonâncias e rupturas de senso. Um gérmen da noção de interpretação como equívoco, formulada por Lacan (2011 [1974]) no segundo ensino, ao sublinhar algo no simbólico que se restringe por um jogo de palavras, uma equivocidade que comporta a abolição do sentido.

Na subversão linguística operada no primeiro ensino de Lacan, são extraídas as leis que articulam a estrutura da linguagem, como a metáfora e a metonímia, para subsidiar uma lógica própria ao inconsciente, num jogo significante de substituições, combinações, elisões e deslizamentos, que incide nas formações do inconsciente. Há algo, porém, que dissolve e escapa ao sentido, ponto em que a equivocidade e a errância significante conferem adensamento ao tema. Tais dimensões presentificam o inconsciente como cicatriz evanescente e evasiva no discurso, com “esse não-sei-o-quê que nos toca” (LACAN, 2008 [1964], p. 32). Assim, uma primeira passagem da interpretação como decifração para a interpretação como equívoco começa a se delinear e incide no estatuto do sonho.

A equivocidade e a errância significante retornam no dizvã (LACAN, 2001 [1977], p. 6), neologismo lacaniano que gera uma homofonia entre divã e direvent, que comporta dire (dizer) e vent (vento). O que se diz ao vento ou no divã presentifica uma função poética do significante, capaz de testemunhar que “a função da linguagem não é informar, mas evocar” (LACAN, 1998 [1953], p. 301). As coisas que voam e escapam evocam que na fala e em seu tropeço se trata de “fazer ouvir o que ela não diz” (LACAN, 1998 [1953], p 296). Com isso, é possível dizer que o sonho interpreta o sonhador? Interpreta e interpela. Um sonho que chega à análise é um sonho que já provocou algum burburinho ao falasser, que de algum modo sente-se concernido por ele.

Na mesma lição do Seminário 8, Lacan acrescenta que, no campo do sonho, “tenho um primeiro acesso à ideia de que há mais real do que a sombra, que há, em primeiro lugar e no mínimo, o real do desejo, do qual essa sombra me separa […] o desejo é um desejo de sonho […] o desejo tem a mesma estrutura que o sonho” (LACAN, 2010 [1960-1], p. 458-9). Do que se trata o real do desejo no sonho? O real, aqui, aparece enquanto índice da impossibilidade de conjunção entre desejo e objeto. Há uma fenda que persiste e instaura a metonímia do desejo. Nessa direção, Lacan (2010 [1960-1]) sublinha que o analista desperta o analisante, um despertar que implica instaurar uma separação entre a demanda e o desejo. Todavia, em seu último ensino, ele assinala que despertamos para continuar sonhando, para abordar o real, que não cessa de não se escrever e exige do falasser uma invenção para habitar o exílio da não relação sexual (DESSAL, 2019).

Ao ultrapassar a primazia do simbólico, Lacan (1998 [1975]) aborda a incidência do significante no corpo. Porém, não se trata do significante articulado, estruturado como uma linguagem, senão sua própria materialidade, distanciada da produção de significação. Esta formulação se desdobra no conceito de lalíngua, em que o fluxo fônico do enxame de S1’s produzem, como ondas, equivocidade e funcionam como causa de gozo, melodia desligada de significação, um acorde que afeta o corpo: “não é por acaso que n›alíngua, qualquer que seja ela, na qual alguém recebeu uma primeira marca, uma palavra é equívoca” (LACAN, 1998 [1975], p. 7). Este enxame funciona como aluvião de mal-entendidos, de equívocos que presentificam, nos tropeços, trocadilhos e jogos de palavras, o inconsciente. Trata-se, a princípio, de um fluxo fônico, que só ressoará como uma cadeia significante a partir de um ato de leitura (Arenas, 2017), que é, a cada vez, elocubração de saber sobre lalíngua (LACAN, 1985 [1972-3]). Com a interpretação como equívoco, o sentido estanca e reenvia o falasser ao mal-entendido fundamental.

Em Abertura da sessão clínica, Lacan (2001 [1977]) assinala que a língua é chiclete. Com uma pequena torção, é possível enunciar que lalíngua é chiclete, com ressonâncias que proliferam, retumbam em várias direções:

É pelo modo como alíngua foi falada e também ouvida por tal ou qual em sua particularidade, que alguma coisa em seguida reaparecerá nos sonhos, em todo tipo de tropeços, em toda espécie de modos de dizer. É, se me permitem empregar pela primeira vez esse termo, nesse motérialisme onde reside a tomada do in-consciente (LACAN, 1998 [1975]), p. 7-8).

Dessa maneira, o sonho é um dos arranjos para os ecos e equívocos de lalíngua. O inconsciente, no sonho, é intérprete de lalíngua. Uma borda para o furo central que estrutura o falasser e repercute o impossível, que insiste. Na formação onírica, desde Freud, o umbigo do sonho testemunha um ponto que resiste à interpretação, “um novelo de pensamentos oníricos que não é possível desembaraçar, mas que também não contribuiu muito para o conteúdo do sonho. Esse, então, é o ‘umbigo’ do sonho, o ponto em que ele assenta no desconhecido” (FREUD, (2019 [1900], p. 530). O umbigo do sonho como limite à interpretação aponta para um impossível de cifrar, para uma opacidade do real que exige novos contornos, incessantes. Assim, o umbigo que encerra o sonho é, também, sua abertura (BRANCO, 2021). Em outra direção, Trocoli (2017) resgata a dimensão do umbigo enquanto cicatriz e nó que corta: “os sonhos, em sua intraduzibilidade, em seu umbigo, passam a ter a função de corte. Lá onde eu não interpreto, isso corta” (p. 6). Diante de um nó que não pode ser desfeito, o corte. Cortar um ponto de impossível. Cortar e deixar cair os restos de uma análise. Cair. Decantar. Lançar. Uma ética da psicanálise é, portanto, uma pó-ética, ao dar lugar aos restos.


REFERÊNCIAS
ARENAS, Gerardo. Pasos hacia una economía de los goces. Olivos: Grama Ediciones, 2017.
ASSEF, Jorge. O sonho e sua interpretação na direção do tratamento hoje.  XII Congresso Associação Mundial de Psicanálise, 2020. < https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/papers_001-pt.pdf >.
BRANCO, Lucia Castello. O caderno de [cem] sonhos de MGab. Belo Horizonte: Letramento, 2021.
DESSAL, Gustavo. Lacan insone. Conferência pronunciada na IV Jornada da EBP-Seção Santa Catarina – Tempo de sonhar, instantes de despertar, 2019. < http://revistaarteira.com.br/index.php/lacan-insone#:~:text=Ainda%20nesse%20semin%C3%A1rio%2C%20Lacan%20concebe,363 >
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos sonhos (1900). Obras Completas, v. 4, São Paulo: Cia das Letras, 2019 (PDF).
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. Conferência em Genebra sobre o sintoma [1975]. Opção Lacaniana, n. 23, 1998.
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise [1953]. In: Escritos: Zahar, 1998.
LACAN, J. Abertura da seção clínica [1977]. Opção Lacaniana, n. 30, p. 6, 2001.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. O seminário, livro 8: a transferência [1960-1961]. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
LACAN, J. A terceira [1974]. Opção lacaniana, Edição Especial, n. 62, 2011.
TROCOLI, Flavia. Ali onde eu não interpreto, isso corta. Lacuna, São Paulo, v. 3, n. 6, 2017.
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