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Editorial

Salvador, 5 de outubro de 2011

 

A nova ordem simbólica do Século XXI

 

A Seção Bahia tem o prazer de retomar o contato com seus leitores. Após um período de mudanças, incluindo a mudança de sua sede física, eis novamente o @gente digital aproximando a Escola Brasileira de Psicanálise de sua função de transmissão e formação dos psicanalistas no século XXI. O frescor do novo fenômeno mundial do Site WikiLeaks trouxe um irônico alívio aos que davam por confirmadas as predições de Orwell sobre o mundo do Grande Irmão. Com efeito, a nova ordem simbólica despontou no século XXI ordenada a partir do olhar. Como nunca antes, as instâncias de controle passaram a rastrear contas bancárias, declarações de imposto de renda, escutas telefônicas, etc. Contudo, o fenômeno WikiLeaks destitui o altar de exceção do olhar do Grande Irmão ao transformá-lo em um voyerista comum. Enquanto olhava o mundo pelo buraco da fechadura, o Grande Irmão foi surpreendido por um olhar que lhe escapara. Como tantos outros, seu destino marca mais um símbolo de poder absoluto que fracassa diante das milícias contemporâneas.

 

Quando surgiu a internet, o conceito de rede estava distante de antecipar a fragmentação das grandes unidades simbólicas que ela provocaria. A vulnerabilidade dessas unidades, contudo, não procede de uma unidade simbólica ainda mais forte, e sim de pequenos Hackers, jovens atomizados que do fundo das garagens reeditam a trajetória de David e Golias. É assim que presenciamos a importância das redes na primavera árabe que se expande por todo oriente médio. É assim que uma enorme rede social incluindo psicanalistas, políticos e intelectuais, se conectou na militância mundial para que Rafah Nached, psicanalista síria, seja libertada.

 

Nesse sentido a Obra de Lacan, trinta anos após sua morte, é visionária. É possível identificar um percurso que vai de uma clínica lacaniana que tem no Nome do Pai a garantia de uma ordem simbólica suficientemente consistente, para a clínica lacaniana que reconhece a inconsistência do Outro, vacilando profundamente o modo como o sujeito constrói uma resposta para sua própria existência. Esse percurso pode ser exemplificado a partir de dois seminários de Lacan, separados por precisos vinte anos. Ambos são momentos cruciais para a clínica das psicoses: o Seminário III, As psicoses, e o Seminário XXIII, o Sinthoma.


Quando nos apoiamos no Seminário sobre o Sinthoma, percebemos que o Nome-do-Pai, tal como é apresentado no Seminário III, traduzia a epopéia da crença humana de que há sentido no real. Isso implica em um “forçamento”, digamos, uma invenção da humanidade, que procura apagar a constatação lacaniana dos anos 70 de que real e sentido se excluem.

 

A partir do momento em que o Nome-do-Pai deixa de garantir a aliança entre o que há de real no gozo e o sentido, surge o matema que, inicialmente, foi utilizado por Lacan na construção do grafo do desejo, mas que posteriormente ganhou novo fôlego a partir do curso de Miller O Outro que não existe e seus comitês de ética: Ⱥ.

 

Ao barrar o Outro, Lacan aponta para a impossibilidade de uma relação de alteridade estabelecida nos moldes de problema-solução. Nem todo problema encontrará uma solução no campo do Outro, trata-se de um ordenamento simbólico repleto de restos que são excluídos de qualquer sentido. É nessa perspectiva que Miller pergunta, em seu curso, sobre o modo como podemos pensar a clínica quando o Outro não existe. A resposta é determinante para alcançarmos a nova ordem simbólica no século XXI. Todo resto é lixo, todo resto é desperdício. Sempre que falamos de desperdício falamos de mais de gozar. Na teoria lacaniana, encontramos a expressão desses restos em sua teoria do objeto a.

 

A constatação de que as respostas do Outro são insuficientes, ou seja, que nenhum grande valor absoluto anima mais a crença no Grande Irmão, fez com que o vazio de respostas fosse ocupado pela certeza obtida nos números produzidos pela ciência. A tese que desenvolve Miller é de que o declínio dos valores universais e das grandes crenças, que marca a contemporaneidade, se processa no mesmo momento em que o discurso da ciência é tomado como única verdade confiável. Essa afirmação traz profundas consequências no modo como se configuram os saberes e os laços no mundo contemporâneo. Prosseguindo nosso raciocínio, nos deparamos então com uma pergunta: o que resta do antigo laço social no novo espírito das redes?

 

Chegamos, com essa pergunta, ao Século XXI - século da hipermodernidade para Lipovetsky, do desencantamento do mundo para Gauchet, dos amores líquidos para Bauman, entre outros. O mundo despertou para a precariedade da força simbólica. Bonjour WikiLeaks! Um enorme caleidoscópio cujas peças têm em comum, por um lado, a retração das garantias simbólicas e, por outro, as estratégias do sujeito contemporâneo para evitar sua diluição no relativismo que se seguiu à constatação de que o Outro é barrado.

 

No bojo das reflexões sobre o novo século, uma constatação praticamente unânime é a da fragilização dos laços sociais tradicionais, seguida do individualismo e solidão crescentes do sujeito contemporâneo.  Para o filósofo Alain Renaut, por mais diversos que sejam os modos de abordagem, todos esses autores afirmam que a modernidade consiste em opor às sociedades tradicionais àquelas onde o indivíduo aceita apenas sua própria determinação, recusando qualquer submissão e autoridade. Não podemos ser tão pessimistas assim. A geração do Twitter e do Facebook se comunica mais do que nunca. Uma revolução não precisa mais do que poucos minutos para atingir o mundo plugado.

 

Esse é o princípio que nos fez pensar em uma revista digital. Passamos da Poubellication do texto escrito à dejetalização do mundo digital. Os textos que se seguem afirmam o interesse por uma psicanálise que não pode mais se petrificar em standards. Trata-se, ao contrário, de encontrar novas formas de lidar com o homem contemporâneo que, como nos afirma Eric Laurent em sua bela entrevista ao @agente digital, é cada vez mais torturado pela solidão de seu gozo e pelo Supereu feito sob medida para essa solidão. Desejamos a todos uma excelente leitura.

 

Marcelo Veras

Diretor da Escola Brasileira de Psicanálise-Bahia