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nº 10 | Ano 4 | Dezembro de 2015

 

Uma relação tão delicada

Ana Martha Maia (EBP/AMP)


Em 1989, com este título, uma peça teatral fez um enorme sucesso no Rio de Janeiro. No palco, Irene Ravache e Regina Braga, duas mulheres que encenavam a relação mãe-filha. Em 1994, foi a vez de Querida mamãe. Confundida como autora da primeira, disse a dramaturga Maria Adelaide Amaral: “eu só conseguia visualizar e sentir as duas mulheres em conflito. Os conflitos entre mãe e filha são atuais. Eram há 18 anos e ainda serão por muito tempo”.


Muitos anos se passaram e, no palco da vida, ainda hoje e sempre essa relação se apresenta “conflituosamente delicada”. O que se passa, por estrutura, digamos assim, entre uma filha e sua mãe? Que efeitos as mutações da ordem simbólica e o enfraquecimento do Nome do Pai1 incidem sobre ela? Uma breve vinheta ilustra esta questão e a solução sintomática de uma adolescente que se encontra “na mais delicada das transições”- expressão de Lacadée2, em referência aos laboratórios do CIEN, inspirado em Victor Hugo.

 

Fazia tempo que Mariana – como vou chamá-la - não via o pai, quando é chamada para se sentar com ele de um lado e a mãe, de outro, na presença de um conciliador. O pai não abre mão da paternidade, do desejo de estar com a filha. Tem uma situação financeira difícil, constantemente lembrada pela mãe, e por ela mesma. É um ponto de desfalicização que incide sobre sua potência paterna. A mãe se preocupa com as consequências que este ato “violento” do pai traria, quer protegê-la dele. Mariana fica muito angustiada e consente em vir me falar.


O corpo falante é marcado pela palavra e, como diz Lacan, no Seminário 23,  é symptomatisésymptraumatis[é], ou seja, o sintoma é uma resposta singular que conecta a palavra ao corpo, encontro que faz trauma. Neste traumatismo (trou- matisme, furo-trauma) ocorre, ao mesmo tempo, um furo (trou) e um excesso de gozo (trop). O sintoma é um evento corporal3 que vem constituir um tratamento a este gozo excessivo.  A saída da infância corresponde a um novo traumatismo: o encontro com o real do sexo faz furo e a invasão de gozo suscita angústia. A estranheza com o próprio corpo, a queda dos ideais e o abandono das identificações parentais constituem o que Freud descreve como as tormentas da puberdade.4


Capturada pela palavra da mãe, Mariana só podia ver o pai como o homem fracassado e violento que a mãe descrevia. Com suas provocações sutis, em tom suave e com uma gélida indiferença, ela o levava ao descontrole e os encontros finalizam no mesmo ponto de tropeço. Em um passeio, já no ônibus, surge um impasse: ela não quer ir ao lugar que ele popôs. Ela me conta como foi e repito uma frase que disse, apontando um real que retornava no mesmo lugar. Surge o desejo de encontrá-lo, para além do que a lei determina. Mas não é nada fácil mudar de posição diante da mãe. Freud ressalta que o amor e o ódio são as duas faces da relação pré-edípica com a mãe.


Um tempo depois, recebi um telefonema. Penso com Miller: uma adolescente vivendo o drama edípico da neurose no tempo dos desenganados e da errância5. E me lembro do que diz Lacan6 sobre o “ponto de onde”, circunscrevendo que é no Outro (A) que o sujeito se constitui como ideal e se vê como amável. À deriva na praia, anestesiada pela vodka, ela procura um novo lugar no Outro. Isso reverbera no corpo que gozava desmerecendo o pai e ficando sem ele, como a mãe.


No momento, ela usa da hostilidade para se separar da mãe e segue em direção ao pai. O trabalho com ela é uma aposta de que encontrará um novo “ponto de onde” na produção de algo novo, em relação a um arranjo singular com seu gozo. 

 

1 Miller, J-A. Em direção à adolescência.  III Journée Institut de l’Enfants. 2015.

2 Lacadée, P. Le malentendu de l’enfant – que nous disent les enfants et les adolescents d’aujourdui? Paris: Éditions Michèle. 2010.

3 Lacan, J. Joyce, o sintoma. Outros Escritos. RJ: JZE. 2003. P.565.

4 Freud, S. (1905) Três ensaios sobre a sexualidade.  Obras Completas, vol.VII. Rio de Janeiro: Imago. 1982, p.213.

5 Miller, J-A. e Laurent, E.  El Outro que no existe e sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós. 2005.

6 Lacan, J. (1973[1963-4]) O Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p.255.