A plasticidade do gozo na adolescência
Marcelo Magnelli
O declínio da função paterna, característica do mundo contemporâneo, traz consequências ao modo como o falasser se defende do Real. A feminização do mundo é uma dessas consequências e põe em tela formas de gozo com pouco ou nenhum lastreamento fálico.
À época de Freud, o trabalho analítico tinha o objetivo de se levantar o véu em torno do mistério do sexo, já construído inconscientemente. Hoje em dia, um trabalho a mais nos é exigido, como nos diz Domenico Cosenza1 :
“A dificuldade que os adolescentes contemporâneos têm com o sexo parece ser o inverso do percebido em outros tempos. (...) É, pelo contrário, em primeiro lugar e acima de tudo uma questão de introduzir esse véu, possibilitando a construção da fantasia que pode dar limite e conter o desconcerto dos jovens ao estarem expostos, sem filtros, ao objeto inominável que está em jogo na relação entre os sexos”. (grifo nosso)
Talvez possamos pensar que, às expensas da constituição da fantasia fundamental, com a puberdade e os acontecimentos de corpo que se impõem ao falasser (característicos da época e que atestam o Real do sexo), o que se mostra necessário na adolescência é a possibilidade de se fazer um uso sexual do fantasma. É este uso que permitirá uma monomorfização da perversão. Mantendo esta direção no horizonte, vejamos os ditos de Ariadne, 17 anos:
“Para mim, homem ou mulher... o negócio é aproveitar”. “Não sei qual universidade faço, mas estou estudando... vamos ver se passo em alguma”. “A vontade de estudar vem e vai, depende do quanto minha mãe me pressiona”. “Minha mãe é quem me ajuda para eu conhecer minhas paqueras, ela é quem puxa papo e me apresenta pra quem eu tô a fim”.
Este exemplo nos mostra, dentre outras coisas, uma elasticidade, uma plasticidade do modo de gozar. Nossa hipótese é de que o falasser não pôde, até o momento, fazer um bom uso sexual do fantasma, não restando uma clara eleição de objeto de amor, o que se dá a ver também a partir de uma indefinição vocacional. O falasser permanece em certa errância. Se Stevens nos alerta que a adolescência é uma solução ao real da puberdade, é também ele quem nos alerta sobre o perigo de uma errância:
“Eu lhes direi uma última coisa: quais são os sinais em que se pode ver que a situação de um adolescente se torna perigosa, evolui mal? Creio que o maior sinal é o fato de que ele se encontra em um certo flou, em uma certa errância, não consegue fazer escolhas nem sustentá-las”2.
Mesmo no adulto podemos nos aperceber de efeitos de enodamentos característicos da adolescência. Vejamos o que diz Luciana, 43 anos:
“Eu não me aproximo das pessoas, o melhor é poder viver quieta no meu mundinho, quero viver em paz”. “Fiz minha faculdade mas nunca trabalhei na área... eu segui o fluxo trabalhando com meu parceiro”.
Se Ariadne mantém-se bem elástica quanto a escolha de parcerias amorosas (ela diz: “o importante é ficar”), Luciana, contando seus 43 anos, mesmo casada, encontra no prazer solitário uma saída ao confronto com a não-relação sexual, com um gozo que irrompe e não encontra simbolização possível. Por outro lado, ambos sujeitos apresentam dificuldades em estabelecer uma direção vocacional, em encontrar um sentido para a vida. Resta, em decorrência disso, um entediamento, uma melancolização em ambos os casos.
Assim, nossa hipótese é a de que, mesmo no adulto, algo da adolescência parece se prolongar, permanecer. Parece-me que Fabián Schejtman caminha na mesma direção ao se referir a estes casos como “neuroses ordinárias”. Para Fabián estas neuroses são polissinthomatizadas (ou polirreparadas), aproximando-nos da “neurose inarrebentável” que Lacan cita em seu Seminário 213: “neuroses que aguentam o golpe, não se reinventam, não se desencadeiam”4 por contarem com três grampos segurando os três registros, embora tais sinthomas não enodem RSI em “forma de orelha”, mas sim apenas 2 registros por vez.
Como exemplo de neurose ordinária, Schejtman cita o caso de Luis, 26 anos: o versátil. Ele chega à consulta entediado, deprimido, há pouco menos de um ano, desde a morte do seu pai. Antes da morte dele vivia uma “vida louca”, que aparece também no significante que repete nas entrevistas iniciais: versátil.
Sua versatilidade consistia em ter uma grande amplitude em seus laços amorosos: tinha uma namorada, e com ela mantinha relações sexuais, assim como – eventualmente – com um colega de trabalho. Saía às noites com prostitutas, mas também com travestis. Apesar de ser homem, dizia: “cualquier bondi me dejaba bien” (algo como: “topo qualquer parada”).
Com a morte do pai tudo é descontinuado: termina com a namorada, não vê mais o colega de trabalho e não sai mais às noites. Recolhe-se em uma masturbação compulsória. Surge o tédio que ele chama de depressão. Destaco esta vinheta clínica de Schejtman por dois motivos:
1. para também ilustrar a possibilidade da propagação de algo da adolescência na vida adulta5 e que normalmente atesta uma plasticidade do gozo e um entendimento/melancolização – propagação esta característica do contemporâneo – mas, também;
2. para ilustrar um ponto de virada a partir da intervenção do analista: Luis produz um lapso (ao invés de dizer versátil, se ouve dizer “versalir”).
O analista lhe pergunta: “Ver salir?” (Ver sair?). “Este lapso se ligou a uma recordação esquecida por anos, de haver visto saindo, meio vestido, meio nu, às altas horas da noite, do quarto do seus pais, em sua infância, em certa oportunidade em que seu pai estava em viagem, um amigo dele – quer dizer, um amante da mãe”6.
Fabián nos aponta que este lapso e esta recordação marcam o começo de sua análise, pois neste momento surge uma cena, possibilitando o início de um enigma sobre o sexo, o início da possibilidade de um uso sexual de uma cena fantasmática, fixando gozo7.
1 COSENZA, Domenico. In: “Iniciação na adolescência: entre mito e estrutura”, texto publicado em Agente Digital – Revista de Psicanálise #09 (Disponível em: http://www.ebpbahia.com.br/agente/download/003_agente09_domenico_cosenza.pdf)
2 STEVENS, A. “Quando a adolescência se propaga”. In: Opção Lacaniana On-line, ano 04, número 11, junho de 2013, p.12. (Disponível em: http://goo.gl/XPnrZ3).
3 LACAN, J. Aula de 11 de dezembro de 73 do Seminário 21, “Les non-dupes errent”, (apud SORIA, 2015),
4 NIEVES, “Ni neurosis, ni psicosis”, Del Bucle: Buenos Aires, 2015 p.164. Livre tradução.
5 Para Fabián, um modo de enodamento com poliamarrações.
6 Idem item 3.
7 Idem item 3.