O adolescente, o objeto e o Outro
Luiz Mena
Para Lacadée, a adolescência não é uma fase do desenvolvimento, e sim “uma resposta sintomática do sujeito, quando a libido, escapando a qualquer entendimento, envia-o à solidão, à errância e ao sentimento de ser incompreendido pelo Outro”1.
Vivemos, na contemporaneidade, um declínio da tradição, da Lei simbólica. Há uma “falha no universo”, dizia Skriabine:
Esta falha no universo, Lacan a escreve . Isso quer dizer simplesmente que o Outro, o Outro absoluto, radical, aquele que sabe, então também o Outro da linguagem e da verdade, aquele que seria a garantia última, dito de outro modo o Pai, ou, se vocês preferirem, Deus, não existe.2
Se podemos dizer que a infância é marcada por um Outro consistente, que sabe, que organiza, que orienta, a partir da puberdade é sentida a inconsistência do Outro, em que o declínio do simbólico lança o falasser a um abandono, obrigando-o a se tornar o artesão do sentido de sua própria existência. De certo modo, a adolescência, enquanto sintoma moderno, aparece exatamente no momento em que o Outro não responde mais, ela é correlata à inexistência do Outro, como se vivêssemos na contemporaneidade a era de uma “adolescência generalizada” que invade a idade adulta, e o adolescente fosse simplesmente o porta voz da notícia: “O Outro não existe! Como é que eu faço pra controlar isso?”
Nesse sentido, parto da hipótese de que o adolescente não recusa simplesmente o Outro, como se diz, mas faz de tudo para fazer consistir o Outro, através de dois modos principais: através dos gadgets e através do corpo.
Costumamos falar da globalização e da multiplicação dos gadgets como enviando repetidamente o adolescente ao isolamento, a um “goza!”. Absorto na telinha, encontra-se sozinho, em um tipo de laço social que produz um apagamento de si mesmo, como o sujeito que cria um personagem virtual, com outro nome e outra história.
O paradoxo aí é que as telinhas, apesar de parecerem reenviar os sujeitos continuamente para a solidão, carregam a característica de serem, segundo Lacadée3, “janelas para a verdadeira vida”, através da errância no mundo virtual. Por isso, podemos considerar que as telinhas não representam simplesmente uma recusa do Outro, mas seriam uma tentativa de fazer consistir o Outro que não existe: onipresente, onisciente e onividente, as 3 propriedades de Deus... e do Google! Porém, o efeito dessa operação é a produção de um Outro-máquina, que nada deseja do sujeito, e que leva também a um apagamento do desejo do próprio sujeito, através da negação da própria falta através do excesso dos objetos.
Essa errância adolescente encontra-se no mundo virtual mas também no mundo real, e sempre envolve a dimensão de um ato4. As “condutas de risco” acarretam uma probabilidade considerável de se machucar ou de morrer, de pôr a saúde em perigo, através do álcool e outras drogas, direção perigosa, esportes radicais, tentativas de suicídio, distúrbios alimentares, brandings, escarificações, etc. O corpo, assim, é o lugar onde se produz um gozo iterativo, que não passa pelo Outro, mas também é o lugar onde se atualiza o problema da identidade. Desse modo, ele dá um certo contorno de existência ao adolescente. O jovem trata e esfola o corpo, cuida dele e o maltrata, o ama e o odeia. Quando o sentido escapa, o jovem o busca na superfície desse corpo: testar os limites, colocá-los em jogo para senti-los e apreendê-los, a fim de que possam conter o sentimento de identidade5.
Podemos entender que o uso que o adolescente faz do corpo seria também uma maneira de fazer existir o Outro, agora através do corpo, como nos explica Sandra Oliveira6 a partir do último Lacan:
(...) ao partir da evidência de que “há o gozo”, como propriedade de um corpo vivo e que fala, correspondente à inexistência do Outro, faz aparecer o Outro sob a forma do Um do corpo, que existe. (...) Ao Outro, lugar do significante, Lacan acrescenta o corpo como lugar do Outro.
Se o corpo é o Outro, o “abuso do corpo” seria também uma forma de fazer consistir o Outro que não existe.
Ou seja, as duas saídas presentes na adolescência – o abuso do objeto e o abuso do corpo – parecem respostas sintomáticas que visam, ao mesmo tempo, a um afastamento do Outro, através da produção de um gozo iterativo, e a uma tentativa de fazer consistir o Outro que não existe.